intersecção: o inferno encontra o paraíso

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*ATENÇÃO: (este capítulo contém cena de violência e alusão a suicídio)

[semana quatro]

Os caminhos que levam até o destino naquela noite são movimentados.

As ruas de bares, restaurantes e estabelecimentos de procedência duvidosa, invadindo espaços indevidos, ultrapassando a calçada com mesas e cadeiras, abrigando jovens sorridentes - exalando uma felicidade que só pode ser produzida por dosagens alcoólicas elevadas - me fazem enterrar a palma da mão o mais fundo que posso na buzina do carro. Tão forte que sinto o pequeno pino de ouro no ínicio do pulso da luva negra afundar em minha pele, mas nem isso me impede de continuar a sinfonia aguda, espero que alta o suficiente para silenciar a música ao vivo, em conflito com as batidas eletrônicas gravadas e reproduzidas de tantos aparelhos em um único quarteirão, que nada se ouve, tudo se confunde e me irrita.

Com o vidro aberto, aproveito para externar meus xingamentos ao grupo de amigos desfrutando da boemia romana. Afortunados, eu penso, aproveitando a última semana das férias ferrando o fígado e a moral antes de ter de volta as desgraças acadêmicas.

Estou estressado.

Quase não reconheço minha voz gritando palavrões a um casal dançando exatamente no meio da rua, antes de acelerar o Maserati mentindo que poderia atropelá-los e eu gostaria de atropelá-los. A forma como se acuam assustados tropeçando até alcançar a calçada, a garota com a mão na boca, o rapaz devolvendo os impropérios, revelam que, por um momento, temeram o louco dentro daquele carro escuro.

Andrei também teme, pois se ajeita no banco do passageiro e me repreende com seu olhar afiado e análitico, o mesmo preenchendo seu rosto desde o instante em que abriu a porta da minha sala em nosso escritório, se recusando a sair sem ser me seguindo, consciente da última ordem enviada por Salvatore. Claro e ditador, nos fazendo retornar a um lugar obscuro, pouco habitado e na maior parte do tempo ignorado, do nosso passado.

Novamente estamos juntos - como em todos os dias da semana, a propósito - mas Andrei está enganado se acha que terminaremos da mesma forma que anos atrás, porque não se trata de mais uma noite, mais algumas horas escuras na rotina lícita ou ilícita de nossas vidas que há tantos anos andam entrelaçadas.

Gostaria que não estivesse lá.

Disse isso a ele antes que se enfiasse dentro do veículo sem deixar oportunidade para a recusa de sua presença inconveniente.

Os julgamentos de humor começaram depois da minha desfeita, irritantes e em intervalos curtos, testando minha paciência. Você está bem? Perguntou duas, quatro, seis vezes e agora, ao me ver quase atropelar um casal inocente de jovens apaixonados, ou apenas investidos na ideia de terminar a noite de um jeito mais proveitoso do que provavelmente será feito o final da minha, se acha no direito de tentar desvendar o que se passa em minha cabeça. Um pouco mais incisivo e, mais uma vez, impertinente, porque isso é tudo que o espião sabe ser.

"Jimin, você tem transado?" Mesmo contra a vontade, pela incredulidade, acabo encarando momentaneamente seu rosto ainda escandalizado pela minha condução perigosa, mas com ela só busco chegar o mais rápido possível ao nosso destino final. Andrei se segura na alça de segurança por receio de qualquer próximo movimento arriscado. No braço, enrolou a manga da camisa com estampa de gosto questionável e vejo a ponta de sua tatuagem. Só de avistá-la um arrepio revira meu estômago, uma resposta que parte de dentro. Eu não estou bem. "Faz dias que essa sua cara tá me colocando medo".

Ele não tem ideia dos problemas que tenho alimentado. Se parasse aquele carro e começasse a enumerá-los, passaria horas esquentando seus ouvidos com as minhas questões, migrando dos problemas práticos do dia a dia e divagações existencialistas aos fantasmas do nosso passado e também da vida atual. Sexo é a menor das questões, o impasse envolvendo a filha do nosso chefe não pode ser reduzido a algo tão simples de ser resolvido. É quase tão insignificante que até mesmo me esqueço qual foi a última vez em que estive com alguém e sinceramente, não me importo. Isso é o quão no fundo do poço eu estou e o quão no fundo do poço Andrei chegará em breve, como todos os outros.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora