anti-herói: falácia do continuum¹

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O último clique desacomulou a tensão dos ombros e eu sorri por obrigação, conversei bobagens sem propósito, tentando ser educada. Não passava de encenação e aquilo continuava a ser um grande circo montado sem o meu consentimento.

A equipe de fotografia prometeu a prévia da foto de capa. "Vamos tentar duas opções e você escolhe a que te agradar". O homem por trás das câmeras, coordenando a iluminação, propôs gentil e só então me dei conta da proporção do problema: a merda gigantesca em que Mancini me obrigava a afundar os dois pés e, talvez, deslizar sobre ela me levasse ao chão em questão de meses, se as coisas saíssem do controle. A mídia conhecida é tendenciosa, te acaricia em um momento, em seguida te apunhala sem piedade pelas costas.

Quando finalmente abandonei a sede da L'espresso*, respirei fundo dando conta da escuridão do céu. Já era noite. Merda.

Já era tão tarde e um milhão de mensagens não lidas atulhavam a tela do smartphone, esquecido em minha bolsa durante as últimas quatro horas e eu não fazia ideia de que uma entrevista, algumas poucas fotos, tomassem tanto tempo do dia de uma pessoa ocupada.

Uma capa! As coisas que a gente faz por um emprego.

Tentei gritar com alguém antes de tomar o rumo do meu apartamento, mas só a brisa noturna me aguardava. O que foi feito estava feito. Reclamar não adiantaria.

"Precisa se lembrar: Salvatore é um político, sabe muito bem manipular e tem parte do controle da massa, pode dobrar a mídia se quiser, comprar a mídia e você tem carisma. A opinião pública gostou do que viu e ouviu desde a primeira coletiva, gostam dessa imagem de justiceira e vou usar ela a nosso favor". Foi o argumento "irrefutável" na ponta da língua do Delegado. Na verdade eu até poderia contradizê-lo se quisesse. Primeiro porque Salvatore já não era tão popular - popular era a porra do Presidente que indicou esse desgraçado ao cargo. Segundo porque, na minha lista de ambições para a vida, ser famosa nunca figurou como prioridade. Nunca passou pela minha cabeça - nem em sonhos mais insanos

Eu não era uma celebridade, nem pretendia ser ou glorificar pessoas do sistema contencioso, da segurança pública pela execução de trabalhos pelos quais já eram pagas - e muito bem pagas em alguns cargos. Não. Não era certo, não havia mérito nisso e essa merda de justiça idolatrada só deveria existir dentro de histórias rasas de super heróis clichês e maniqueístas.

Parabéns por cumprir com sua obrigação, parabéns por fazer o mínimo e tome aqui uma capa de revista, porque a população é mesmo idiota a ponto de adotar um dos lados como salvador, quando o propósito deveria ser refletir exclusivamente sobre o culpado e o impacto de seus crimes.

Sinceramente, quem eles acham que eu sou? A Beyoncé?

Eu mal soube me portar diante da equipe de produção e só não dei conta de refutar a ideia, fugindo do estúdio "à francesa", porque Beatrice tomou conta dos meus pensamentos, também por ter o bom senso de reconhecer o meu lugar de subordinada. No fim da história Mancini mandava e eu obedecia - em teoria, desconsiderando toda a arquitetação, sem o seu consentimento, de um plano de proteção a uma das vítimas indiretas daquela organização criminosa.

Detalhes, alguém liga?

Jungkook provavelmente.

Deve ter surtado e entrado em pelo menos três crises diferentes durante esse intervalo de tempo. Conversamos no início da tarde e eu disse que estaria enrolada, então evito visualizar seu desespero concretizado naqueles pedidos de socorro não lidos, porque meu dia foi absurdo, a minha semana mais surreal ainda e as coisas só se complicariam mais e mais a medida em que o fim se aproximasse. Um fim compreendido de muitas maneiras e com variadas implicações. O meu fim? Não posso descartar a possibilidade.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora