terceira carta: prisioneira

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Outubro, 2013


O que você faria se soubesse que parte da sua única verdade não passa de uma mentira muito bem articulada ? Não espero que responda. Se eu nunca te encontrasse em vida, sua falta de afeto um dia seria preenchida pelo frio desinteresse do esquecimento e não recordaria seu rosto. Minha culpa? Roubou meus sonhos, os enfiou bem no fundo das malas arrumadas, então os condenou a viver onde os deixarei guardados antes de voltar para sua casa.

Foi como me senti, enganada, ao sair do internato forjando sua autorização.

Gabrielle me levou para ver as luzes da Avenue des Champs-Elysées* afunilando em uma escolta de cores brilhantes o arco do triunfo e Paris parecia mais minha casa que qualquer outro espaço ocupado no passado. Você também me roubou um país e a conexão de pertencer a um lugar - qualquer lugar. O frio era de neve, mas as ruas estavam limpas e uma família amorosa me segurou pelas mãos, uma mesa posta, olhares longos e carinhosos antes do passeio, abraços e a sinceridade da união familiar desconhecida na ilha.

O que é Nápoles? Do que era feito aquele pedaço de terra cercado de água salgada? Não serviu de nada, não trancafiou minha mãe na torre do castelo, nem fez dela a princesa na qual as revistas prometeram que você a transformaria.

Julieta Contini, Julieta Salvare.

Não ficou.

Não quis ficar.

Quem em sã consciência permaneceria com você por vontade própria? Por dinheiro? Que se foda o dinheiro, pode morrer engasgado em seus números. Quem gastaria um dia inteiro de vida ao seu lado?

Passei anos da vida supondo que não me suportava, mas eu percebo agora como fui boba por esperar amor.

Eu te recuso como pai tanto quanto você me recusa como filha.

Uma bela história sobre o peso das mentiras, das restrições e da falta de carinho.

Se me quis tão desesperadamente fora do alcance da sua redoma de vidro e mentiu um endereço para que as cartas (as enviadas e as queimadas) nunca chegassem, então vou dizer em última missiva destinada a ninguém, ou alguém cujo o nome eu gostaria de para sempre suprimir, que sei das coisas que pretendeu conquistar longe de mim. Querendo ser seu próprio pai com tanta gana quanto a que cuspiu se negando a ser o meu.

Eu já sabia, desconfiei antes mesmo do final da busca detalhada por respostas. Lelle me disse que não havia nada em Nápoles, por um momento foi como se a Ilha não passasse de um fruto mal formado da minha imaginação de criança e você de um homem próspero, que nunca se casou, nunca teve filhos, prestes demais a galgar ao topo mais alto de uma carreira copiada dos sucessos de outra pessoa.

Vovô sempre soube fingir amor.

Você é só um monstro.

Foi voltando do Natal passado, quando te sepultei tão fundo a ponto de sentir apatia profunda, nada além de um rasgo oco e consumido das últimas gotas das tentativas infinitas para argumentar o que, a uma criança, não deveria ser justo justificar. Agora me chama de volta e eu gostaria que desaparecesse.

É dezembro outra vez.

Sua voz fria cortou a ligação sem dizer "filha".

Ela se repete, pai.

Também vou eu me repetir, sendo o espelho da princesa presa no alto do casarão?

Preciso que volte para casa após a formatura. O voo está marcado, você vai morar em Roma - faça isso, diga isso, cale a boca. Como se fosse nada, como se anos não contassem na passagem inevitável do tempo, desde a última vez em que me ouviu fingir proximidade.

Preciso que volte a ser minha filha - era esse o real significado das palavras?

As minhas são transparentes e poderiam me matar.

Eu te odeio, mas não consigo dar nutrição a noção distorcida do ódio, porque não quero, nem desejo ter para sempre aquele castanho odioso da tempestade do verão que a levou embora.

Olhos de Julieta enxergando a vida.

Comprados e mantidos por você.


Sinceramente,

Beatrice Salvatore.


*Avenue des Champs-Elysées: prestigiada avenida de Paris.



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