seu olhar: ruína

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A esposa de Matteo Salvatore cometeu suicídio no feriado de Ferragosto*, um dia depois da família ter dispensado todos os empregados da casa para as férias anuais e coletivas de verão.

Beatrice, a única filha do casal, foi a primeira a encontrar o cadáver e na semana seguinte a sua descoberta, abandonou o país para uma longa temporada de estudos em um internato, local em que permaneceu incomunicável, ou pelo menos foi essa a versão que me contaram todas as vezes em que busquei saber o que havia acontecido a pequena e insuportável "Miss Salvatore", como costumava chamá-la quando senhorita me parecia uma palavra difícil demais para ser pronunciada.

Juntos limpamos o sangue do chão, da parede e nos livramos dos lençóis machados. É provavelmente a lembrança mais triste que tenho dela e curiosamente é a única a que consigo retornar agora que estou prestes a reencontrá-la, talvez porque tenha sido uma das últimas antes de nossa despedida.

O final da sua infância foi marcado pela sinistra presença da morte, do avô, da própria mãe, mas a minha vida inteira e não apenas um recorte dela, depois de sua repentina partida, esteve marcada pelo perecimento de coisas e, sobretudo, de pessoas. Porque é isso que faço: Mato pessoas. E ceifar vidas é o que me faz parte integrante da "Coisa Sagrada", um organismo vivo, com muitos braços e pernas para perseguir e amedrontar pela força, muitas bocas e línguas para ameaçar pelo poder da influência e possuindo como maior punição a própria morte.

A "La Cosa Sacra*", nome mais terrivelmente irônico e previsível como qualquer boa máfia italiana, está por todas as partes, em todos os lugares: no governo eleito democraticamente, na violência exercida pelos representantes do tráfico nos bairros de cidades pobres. Nós somos a essência de um país que se contaminou pelo vírus do pecado, da corrupção.

O vírus da máfia e foi ele o responsável por me conceder meios para uma educação e uma carreira de sucesso em tão pouco tempo, mesmo sendo um estrangeiro que, ao pisar em solo italiano pela primeira vez, sequer falava a língua nativa; por me oferecer abrigo e me socorrer de uma morte precoce nas ruas frias de outro país em que nada tinha além de fome e dívidas que me custariam a vida.

Salvatore me forneceu dinheiro e uma existência repleta de luxo, é verdade, mas muito mais que isso, me concedeu uma segunda chance para viver e eu não tive condições de rejeitá-la. Continuo a não ter esta escolha, porque uma vez que você se descobrir absorvido por esse organismo de vida própria, todos sabem, não há meios de se sobreviver longe dele. Qualquer um que tenha tentado fracassou no meio do percurso.

Ninguém abandona a Coisa Sagrada. Uma vez marcada a cruz negra sobre a pele humana, o indivíduo que a carrega será honroso, será fiel a nossa família, mesmo que não possua o sobrenome Salvatore, mesmo que nunca chegue perto de herdar o poder do chefe desta genealogia amaldiçoada.

Não sou cego, embora tenha perdido boa parte dos meus valores nos últimos anos. Tenho consciência das coisas que fiz, das que faço em nome da cruz que, literalmente, carrego em minhas costas. Mas se não eu, outros tomariam meu posto. Por mais absurdo que pareça, lá fora há pessoas que matariam para fazer parte da vida que levo.

Uma vida de perigos, mas que concede privilégio e dinheiro, muito dinheiro. Seria hipócrita da minha parte dizer que tenho levado uma existência de muitos martírios. Não minto que cheguei a acreditar que fosse este meu destino, uma vida de ruínas, quando Salvatore, o homem que me retirou das ruas, morreu e seu filho Matteo ascendeu ao trono imaginário e cobiçado da Cosa Sacra. Contudo, ainda que quisesse se livrar de mim, naquela época eu já havia sido marcado pela máfia e mesmo ele, alguém tão podre, entendia perfeitamente que ninguém mata a Cosa Sacra sem motivos.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora