resultado: complexo de Deus

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"Tiveste sede de sangue, e eu de sangue te encho¹".

(Dante Alighieri)



Eu não queria amá-lo.

No vacilo de uma vida perfeita, pré-fabricada e, por consequência, falsa, eu aprendi sozinha que não sou nada e continuo a ser nada, alguém ordinária que o dinheiro não salvará da vala da putrefação da morte. Do inferno ao purgatório de Alighieri e, muito embora eu leve o nome de sua musa, deixei de ser a garota isenta de erros que se revira em tragédias familiares. Porque quero ser falha por meus próprios erros, quero encontrar meu próprio caminho e lugar no mundo. E sinto muito pela vida que minha mãe aceitou levar e a outra vida que você tirou.

Park Jimin. Lembre deste nome, porque não vou deixar que esqueça. Foi por isso que escrevi, guardo as motivações mais nobres para as pessoas com sentimentos. Você não passa de um monstro, ele, alguém que se limitou ao pior lado por sua culpa.

Jimin Park. Enquanto suas mãos permaneciam sujas do mesmo dinheiro que me enriquecia, eu só rogava aos céus para que continuassem a me tomar como propriedade e me estilhaçar em ínfimas partículas de amor e dor. Eu o amei e não me arrependo. Pai, eu não me arrependo, e se isto é um pecado, espero, sinceramente, que alguma força superior me perdoe, por saber que já perdoei equívocos piores que este de amar alguém, coisa que você nunca soube ou quis fazer na vida. Estou prometendo: vai se lembrar para sempre do que um pai que não ama uma filha significa.

Atenciosamente,

Pela última vez,

Beatrice Salvatore.


A espuma flutuou na lisura do café diluído em leite, escorreu tombando, só um pouco, quando ergui a xícara do pires e relevei a segundo plano o que lia: a breve carta presa, por um clipe de metal, à folha de rosto do meu primeiro trabalho publicado. De uma crueldade sem tamanho — obra e carta — e gosto de pensar que Cecília analisou ambas as coisas, com um bom julgamento em sua descrença sarcástica, validando o resultado como um revide justo, um arremate perfeito para uma história totalmente fragmentada.

"Você foi mais apurada que a polícia". Ela me disse. "Um serviço que serviu de alguma coisa".

O exemplar do livro, deixado de lado, não me pertencia e se assentou à mesa do pequeno e reconfortante estabelecimento, saído diretamente de uma romanesca e medieval ruazinha de Amboise*, como um terceiro convidado do chá das cinco. O espírito do seu verdadeiro dono não teve força em um ambiente tão agradável e não demarcado pelo poder que, em vida, costumava exercer.

A investigadora não veio contar que ele estava morto. Isto, as pessoas manipuladas pelas circunstâncias, trataram de me dizer por meio de textos disseminados e compartilhados — informações voando alto e em velocidade acelerada. Já haviam se passado meses e, numa rápida parada de um período de férias merecidas, Cecília desvencilhou-se de um certo tradutor extremamente apegado a sua presença, e dignou-se a uma visita, como uma boa amiga, na posse de uma encomenda um tanto ingrata — os últimos pertences deixados por Matteo Salvatore, meu pai. Objetos, não um número constituído de vários zeros, e do dinheiro eu também era sua única herdeira — um relógio e abotoaduras que eram do meu avô, a aliança de casamento que eu nunca o vi usar, e a cópia do romance escrito por sua primeira e única filha, uma cortesia acompanhada daquela carta personalizada com um breve resumo do que não tive oportunidade de lhe dizer pessoalmente.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora