expurgo: seus múltiplos pecados¹

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Namjoon-hyung me contou sobre os sonhos de sangue.

Os sonhos da nossa mãe.

Um tipo específico de importunação mental. Harmonizava bem junto aos contratempos, nas noites de estafa física, após turnos ininterruptos em empregos temporários, quase todos de tarefas manuais, que não exigissem dela o mal falado inglês. Sonhava com os corpos enfileirados cravados de balas e ferimentos à barra de ferro, com os rostos empapados, inchados e disformes demais para afirmar, com certeza, que algum deles pertenceu ao nosso pai.

Ela não teve de volta o corpo do marido e eu temia por ela

Os pesadelos daquela mulher eram os meus até que inventassem novas formas de ser e experimentar o sangue, em minhas próprias mãos, com meus próprios cadáveres e um novo idioma.

Eu costumava ser uma pessoa.

Tenho um mecanismo quebrado de autodefesa por tentar distorcer a realidade: a de que não sonho com sangue há algum tempo, mas convivi muito bem com sua textura na pele, no tecido de uma camisa de grife, encardindo a unha, e muito bem passa a ser a maneira agradável de admitir não ser inteiro. É o que Cecília pensa quando as algemas deixam meu pulso: que este amontoado de células se parece uma pessoa, mas na verdade não é coisa alguma e está saindo de braços livres e cabeça erguida.

Ela não entende nada de sangue.

Nem como uma ideologia pelo qual morrer, como era ao meu pai.

Menos ainda como um motivo pelo qual matar, por juramentos de sangue feitos com desonestidade.

"Se ainda tem um último fio de decência, não faça nada que nos envergonhe, e principalmente: Nada que a machuque". As palavras da investigadora permanecem comigo e não me sinto "decente" para o juízo completo das próximas ações. São bastantes simples, eu as tenho em um roteiro mental há muitas semanas, porque prometi ser um bom pagador de promessas.

O dinheiro me garante um quarto em um alojamento, policiais montam sua guarda a uma distância segura para não parecer violação da ordem exarada dentro dos limites estreitos da lei. Mas Cecília sabe o que vou fazer, o que disse que iria e, por mais que se importe sinceramente, não pode intervir.

Quase lamento o dano em sua consciência, tanto quanto uma coisa que não é uma pessoa poderia lamentar.

Submerjo em uma banheira de água quente em um andar elevado, de onde a chuva ruidosa agride as janelas do cômodo enfraquecendo a fiação elétrica e um tanto antiga do quarto pequeno de um prédio vagabundo. É tudo cinza por aqui.

Viro os pulsos leves sem o peso do enclausuramento do metal, observo as veias altas do meu antebraço, pensando em todos os pontos de corte que resultariam em morte. Tentador.

Duas foram as condições impostas: a discrição até o dia da primeira audiência e não deixar a capital sem permissão. Cláusulas documentadas valem tanto quanto podem valer a palavra de um ex-membro da máfia: quase nada.

Mancini sabia ao apertar minhas mãos livres antes de dizer: "Seja razoável".

Estou tentando, pra caralho.

Razoabilidade se atrela a tomar um bom banho, efetuar uma troca de roupa, ter uma boa refeição e escapar sem cruzar a fronteira. Em outras palavras, agir como eu previamente avisei, sem, contudo, assumir o papel de fugitivo, ou fugir para depois retornar ao cerco armado por ele — quem primeiro deixou escapar e por último vai reaver o que perdeu, com grande desenvoltura e novas medalhinhas de reconhecimento.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora