segunda carta: indelével

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adj. sig.

1. Inapagável

2. que não se pode destruir, suprimir. Amor.

Setembro, 2010

(mesmo se quisesse, por que eu deveria te esquecer?)

Jimin,

Acho que papai está tentando me castigar por ter sido uma filha ruim, tenho certeza que sim e junto dele tem levado coisas valiosas embora. Já não te vejo, não te escuto e nem mesmo posso lê-lo. Me escreveria? Se eu implorasse e pedisse desculpas por todas as vezes que te feri, você me escreveria? Se me comportasse como uma boa menina, uma boa sobrinha, se me visse agora dentro desses uniformes ordinários, cabelos padronizados, uma cópia exata de todas as outras, sei que saberia que aprendi minha lição, seja ela qual for, e talvez intercedesse em minha defesa.

Estou presa em um conto de fadas mal escrito, na parte que antecede o príncipe encantado, com a certeza de que ele não virá para me salvar e a esta altura acho que nem quero ser salva. É como uma parábola, mas não acho que meu pai teria tanto trabalho para me ensinar o valor que tem o dinheiro e não quero reclamar, não quero escrever cartas inteiras reclamando por não ser, pela primeira vez, adulada, mas as pessoas aqui parecem não entender que não conhecia o mundo antes de sair de casa rumo ao enterro de pessoas queridas.

Eu sou tão ruim? Eu quis me vangloriar da riqueza da minha família, porque era tudo que ouvi de positivo a respeito de ser uma Salvatore durante toda a minha vida, mas percebi da pior forma que, fora da nossa ilha*, eu não sou nada.

Eu não tenho histórias de férias em outros países para compartilhar, não tenho sequer histórias sobre outras cidades. Nunca estive perto de saber que coisas como o Vesúvio* e os vestígios de Pompeia* estavam há poucos quilômetros de mim, sem que eu pudesse visitá-las.

Não tenho coisas para dizer aos outros sobre meu pai a não ser a respeito de sua fortuna. Não tive coragem de dizer seu nome, de dizer o que minha mãe fez ou que os dois decidiram me trancar do resto do mundo.

Eu contei a eles sobre o dinheiro, uma fantasia; descrevi a casa gigantesca, os banquetes, as videiras, os carros de corrida e como voltaria ao verão da Itália nas férias, como se fosse a própria rainha de Nápoles. Mas papai não veio, Jimin, ele não pediu a ninguém que viesse me buscar e quando todas regressaram de suas casas e viagens felizes, com lembranças de pessoas, sorrisos, momentos e não dinheiro e ausência, passei a ser a mentirosa que conta sobre coisas que não tem, que se gaba de uma vida que não possui. Papai me privou até mesmo disso, tomou meu nome Jimin, me proibiu de falar sobre ele, de mencionar nossa família.

Fui ensinada a ser Beatrice Salvatore, a falar como uma Salvatore, a me portar como uma Salvatore, mas agora não sou nada.

Papai paga as contas, ele sempre paga, mas não me compra uniformes novos a cada estação, não envia presentes no aniversário, como antes bancava festas inteiras com pessoas que não se importavam de verdade. Alguém paga pela minha estadia, é o que me dizem, mas não há o nome dele nos meus registros, não há cartas ou telefonemas nos finais dos meses. É como se finalmente tivesse me esquecido, como se tivesse encontrado a desculpa perfeita para não ser mais obrigado a fingir.

Se papai já não me quer como Salvatore, o que eu sou, Jimin? O que resta? Vou compartilhar sobre a vida que achei que tinha, sobre você, em segredo, porque não me sinto mais segura para dizer em voz alta o teor das minhas lembranças.

As pessoas não vão saber, sei que se pudesse dizer veria as bocas que me acusaram de mentir se contorcer em vergonha, mas percebi que não quero mais depender dessa influência que papai exerce. Se preciso dele até para ter amigos, então escolho ser sozinha.

Hoje eu sei, as pessoas não me entenderiam e estou finalmente pagando por ter acreditado, em algum momento, que seria mais, que minha vida valeria mais por ter o sobrenome que carrego.

Aqui não sou ninguém, mas eu gostaria de ser algo para alguém, ter uma casa para a qual regressar, um abraço quente, laços e amor. Você vai me esperar de braços abertos quando, e se, a escola acabar? Porque o verão encontrou seu fim mais uma vez e queria dizer a qualquer pessoa que não tenho para onde voltar, queria contar a você, que deve saber tão bem quanto eu sei, como uma Salvatore pode ser letal.

Tenho queimado minhas cartas nos últimos dois anos, pois sou apenas uma idiota dissimulando coisas na maior parte de todos os textos. Contudo, guardei a primeira escrita porque gosto de como pareço ingênua e boba nela, te chamando de tio e perguntando da sua vida.

Guardarei as que escreverei daqui em diante, porque sei que nos distanciamos tanto e, do ponto em que estou, você se tornou a pessoa perfeita, a quem gostaria de (re)conhecer se tivesse a chance, alguém a quem de fato eu gostaria de contar a respeito de todos as minhas semanas, sobre meus melhores segredos, meus piores medos, na ilusão de que possa dizer em dado momento que fui compreendida.

Não é isso que todos querem?

Você seria meu correspondente favorito, Jimin, sinto que sou mais sincera se tenho seu nome no topo de qualquer papel e estou me despedaçando por isso.

No fundo, acho que sabe o que tudo isso significa e espero que, se algum dia ter isso em suas mãos, leia minhas palavras de peito aberto, sem julgamentos, porque não há no mundo quem me julgue mais cruelmente do que meu próprio reflexo. Então, por favor, não me condene, nem me despreze por insistir em procurar por amor em todos os lugares errados.

Com carinho,

Beatrice. S.

*Ilha: Como eu disse, há alguns capítulos atrás, Napóles é "como se fosse" um Estado da Itália, formado por várias cidades (lembrando, que a divisão geopolítica do país tem denominações diferentes, no lugar de Estado/Cidade, temos Província/Comuna). A antiga casa da Beatrice está localizada na Província de Napóles, mas eu nunca disse em qual cidade/comuna dela e a ideia é que nem ela saiba ao certo, porque vivia completamente isolada ali. No entanto, como sua casa estava cercada por praias, entende-se que o local seja uma Ilha. Só existem três ilhas no Golfo de Nápoles e uma delas já foi citada em um capítulo anterior.

*Vesúvio: é um vulcão localizado na capital da Província de Nápoles. O Vesúvio é mais conhecido pela erupção em 79 d.C , que resultou na destruição das cidades romanas de Pompeia e Herculano. A localização das cidades e seus escombros foram redescobertas no final do século XVIII.

*Pompeia: Foi uma das cidades da época do Império Romano a ser afetada e completamente destruída pela erupção do Vesúvio, que, ao provocar uma intensa chuva de cinzas, sepultou a cidade. Ela se manteve oculta por 1600 anos, até ser reencontrada por acaso em 1748. Cinzas e lama protegeram as construções e objetos dos efeitos do tempo, moldando também os corpos das vítimas, o que fez com que fossem encontradas do modo exato como foram atingidas pela erupção. Atualmente os destroços de Pompeia são atração turística e a antiga cidade é considerada Patrimônio Mundial pela UNESCO.

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Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora