inferno: eu sou o limbo dos seus sonhos

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O quarto deles tinha cheiro de rosas vermelhas, a tonalidade rubra mais pungente que todas as outras cores do jardim. Localizado no último andar, seria logicamente impossível que as culturas terrenas ao redor da casa exalassem aroma capaz de infestar o cômodo do último andar, mas mamãe trazia os ramos da flor certa de cada estação. Não eram as amarelas, as brancas, as das pontas rosadas, eram rosas vermelhas e sei bem que um leigo diria que todas as espécies possuem o mesmo perfume, contudo, depois de algum tempo observando a obsessão estranha da mulher que me deu vida pela flor dos amantes, eu sabia que a rosa carola¹, tingida de um vermelho vivo, exalava um perfume mais forte que todas as outras. Além disso, florescia durante os 12 meses do ano com os cuidados corretos e desse modo, acompanhada de orquídeas, begônias, violetas, ou qualquer outra, era o cheiro das pétalas vermelhas que tomavam conta do local, mesmo quando esteve manchado de sangue.

Lá estavam elas, em um arranjo bonito na sacada, sumindo e ressurgindo do meu campo de visão com o movimento contínuo de vai e vem da cortina pálida. Estava escuro e o quarto vazio foi meu esconderijo, mas a lua cheia emanava claridade suficiente para que as flores aparentassem ter luz própria e eu me lembrava de cada segundo daquela noite. Meu aniversário, pouco mais de um ano antes dela ter ido embora, um ano antes de ter sentido naquele cômodo o cheiro de seu plasma, hemácias e plaquetas misturado ao perfume de suas flores favoritas. Percebo agora, depois de adulta, vivendo dentro de mais um sonho bizarro, que aquela data foi o marco de um cômputo regressivo até que tudo, absolutamente tudo, fosse levado de mim. Meu primeiro aniversário sem a presença do meu avô, a primeira festa organizada exclusivamente a comando do meu pai, o novo rei da casa. Depois disso os meses seriam tormenta, os gritos seriam a rotina, Jimin cresceria a ponto de se tornar um dos adultos de que sempre tive medo, mas fingiria ser o mesmo garoto de antes, o que sorria em todas as vezes que a vida lhe parecia difícil. E mamãe estaria a um passo do precipício da loucura.

O som alto da música me afugentou das rodinhas de conversas entre homens de negócios e suas mulheres elegantes, penduradas feito acessórios em seus braços e pescoços, amigos da família vindos da capital sobre a qual eu pouco conhecia. Mas não foi o exagero da festa adulta, disfarçada de infantil, que me fez paralisada de medo, a ponto de escolher passar o resto da noite do meu aniversário encolhida em frente a sacada do quarto escuro dos meus pais, foi o corpo magro dela, convulsionando perto da morte, as cápsulas coloridas espalhadas pelo chão do banheiro.

Minha mãe teve uma overdose no dia em que completei onze anos de idade, enquanto meu pai se gabava em meio a convidados e bebidas caras. Caída, bem maquiada e vestida feito uma princesa que um dia sonhei que seria, ela sequer teve forças para se arrastar até a porta em busca de ajuda. Homens estranhos vieram em seu auxílio, mas a festa no andar de baixo nunca cessou. As pessoas continuaram a transitar pela casa, pela borda da piscina e as areias da praia privada sem saber que a mãe da aniversariante esteve a um passo da morte.

Naquele momento eu entendi, da pior maneira possível, que estava sozinha, que já não possuía uma figura materna, porque não poderia contar com sua presença, ela nunca me salvaria dos perigos da vida, nem me ensinaria a sobreviver no mundo do lado de fora da ilha.

Sentada, agarrada aos meus próprios joelhos, observei as flores e, acompanhando o movimento repetitivo da cortina branca, peguei no sono, rezando para que minha mãe ainda estivesse viva quando aquela noite acabasse. Lembro-me que no dia seguinte despertei em meu próprio quarto, como se tivesse acabado de ter um pesadelo. Jimin me trouxe uma fatia do que deveria ter sido meu bolo de aniversário, me informando que uma pilha gigantesca de presentes me aguardava, presentes caros dos convidados que não se deram ao trabalho de me oferecer palavras gentis ou um aperto de mão. Mas ali, naquela ilusão do meu subconsciente, aquela noite teria um desfecho diferente, porque de pé, tentando segurar o tecido inquieto da cortina para dissipar o frio estranho que atravessava a janela, escutei a voz dela as minhas costas, viva e limpa, sem convulsões e premonições de morte antes da data de sua partida.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora