prelúdio: o salvador

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Ele era uma alma pura perdida em meio ao inferno.

O homem de vestes negras acreditou que lhe fazia um grande favor ao retirá-lo do frio naquela noite, mas o garoto desejou de todo o coração a morte. Não poderia concordar com a vida naquele mundo, era inaceitável que, se Deus existisse, permitisse que um filho teu sofresse na Terra quando poderia repousar sereno em teus braços no paraíso. Ele provavelmente teria morrido de hemorragia, ou hipotermia, nas ruas mais obscuras daquela Chinatown¹, em Toronto. Teria morrido e alçado aos céus.

O corpo juvenil, coberto de grotescas escoriações, vertia sangue de um corte feito a navalha não suturado. A visão já começava a lhe pregar peças, talvez fosse o delírio que a neve causava por debaixo das roupas, a febre se pronunciando diante de ferimentos infeccionados, ou a dor da morte. Park Jimin sempre imaginou que quando sua hora chegasse, teria coletado alguns momentos felizes para relembrar, mas em sua cabeça não se passava uma retrospectiva de sua própria vida, como mentiu a ficção de filmes e livros. Via vultos, ouvia o próprio gemido ecoando, sirenes perseguindo a violência que ceifaria os próximos anos de sua existência.

Há poucos quilômetros dali, sabia que o corpo de seu irmão mais velho estava abandonado e tingindo de vermelho a neve branca, como o seu. Talvez fosse esse o motivo das viaturas, mais uma vez chegando tarde demais, quando nada além da morte restava para se guardar. O bairro de imigrantes não merecia o esforço para que partidas como as de Namjoon fossem evitadas. Ele morreu repassando drogas, Jimin também morreria herdando a dívida que seu irmão obteve para pagar o aluguel e mantê-los vivos.

Se ainda conseguisse raciocinar, apenas refletiria que não tinha motivos para continuar ali, naquele país, vivendo aquele vida. Namjoon era tudo que conhecia sobre o amor e amizade, sobre motivos para seguir em frente, sua única família, sua referência de casa e ninguém choraria a morte dos dois naquele lugar.

"Como é seu nome, garoto?", foi a primeira coisa que o senhor bem vestido lhe disse. Sua voz chegou ao ouvido do adolescente como descida diretamente do céu. Deus havia se apiedado do seu sofrimento e estava ali para lhe levar de volta para casa, foi o que pensou.

Jimin tentou balbuciar uma resposta, mas sua boca parecia congelada e sua língua estava empapada no próprio sangue.

"Quantos anos você tem?", ele quis saber, mas não obteve resposta.

Tinha 14 anos naquela noite e só esperava morrer em paz. Mas aquele homem não o deixaria partir tão facilmente e não apenas o salvaria da morte, naquele momento, estava selando em sua vida um compromisso secreto. Jimin deveria ser grato, acreditou que retribuir o favor concedido era o mínimo que poderia fazer dali em diante, ignorando que talvez estivesse apenas interferindo em seu real destino: morrer aos 14 anos esfaqueado e estourado em uma viela da Chinatown.

Ao retirá-lo dali, aquele homem desafiou a morte, o premeditado, escrito por Deus e ele não era Deus para decidir se Jimin deveria viver, mas assim o fez. O garoto acreditou em uma salvação milagrosa quando em um último ato de consciência agarrou o pulso do desconhecido, vendo, por entre a névoa de suas vistas, o rosto envelhecido. As luvas escuras circundaram a mão fraca e a abotoadura em formato de cruz reluziu como sinal divino.

Para Jimin aquele era o próprio Deus.

Em seguida adormeceu, sem saber que acordaria em um inferno disfarçado de paraíso.

¹ Chinatown: Assim como em várias cidades ocidentais, como por exemplo Chicago e Seattle nos EUA, Toronto no Canadá possui uma região marcada pela concentração de imigrantes, um bairro intitulado por Chinatown, localidades que, embora encaradas como ótimos pontos turísticos voltados as compras, já foram marcadas pela criminalidade e violência de gangues de ruas.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora