CAPÍTULO 14

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RODRIGO

Vesti apenas um short de pijama cinza claro e voltei para sala. Helena me olhou e fechou o caderno rapidamente, deixando-o na mesa junto com a caneta.

- Helena espera mais um pouco, eu comprei um sorvete e não tem com quem eu dividi-lo.

Ela sorriu timidamente. Era uma moça muito bonita, com os cabelos negros e os olhos castanhos. Parecia ser uma pessoa de muito caráter. Não estava no clima para me envolver com alguém assim. Mas eu precisava muito de uma amizade. Nos últimos dias eu voltei a beber descontroladamente. Mas agora com esse trabalho tão importante, precisava me comportar.

Peguei a caixa de sorvete e Helena pegou duas taças de sobremesa com colher. Colocou um pano de prato na mesa e colocamos tudo em cima. Sentamos na bancada vermelha, lado a lado.

- De onde você vem? Onde mora? O que gosta de fazer? - Perguntei praticamente não dando pausas entre uma pergunta e outra.

Ela arregalou os olhos castanhos e colocou na boca a primeira colher de sorvete. A sua postura corporal dizia que ela estava gostando muito da sobremesa, mas as perguntas foram agressivas. Ela tentava manter o seu corpo o mais longe possível do meu. O que transmitia medo ou desejo controlado. Sorri, tentando quebrar o gelo.

- Isso parece aquela coisa que os "botina" faz para conseguir resposta...

- Interrogatório - Respondi de prontidão. Ela tinha gírias de pessoas que vivem em comunidades.

- Vi uma foto de uma mulher muito linda. É a sua esposa?

Ela estava mudando o rumo da conversa, tentando me atingir para eu esquecer as perguntas iniciais. Tive muitos treinamentos e sei muito bem como é isso. Que garota esperta.

- Era a minha noiva. Mas ela foi embora.

Acho que ela percebeu o meu desconforto. Com um diálogo silencioso, concordamos em não tocar mais nesse tipo de assunto.

Precisou de alguns minutos e quase o pote inteiro de sorvete, para conversamos como antigos amigos.

- Ela é incrível, você tem que conhecer. Com três anos ela decidiu morar sozinha, pegou uma sacola de mercado e colocou mais de 10 maçãs. Quando descia as escadas, a sacola rasgou. As maçãs rolaram. Corri atrás para 'catar'. Mas uma das maçãs, fez a dona Lurde pisar em falso e caiu três 'degrais'. Corremos muito dela, pois era uma vizinha muito brava e que batia em cada pessoa que via na frente sem motivo nenhum.

Helena contava as histórias da filha com muito humor e carinho. Eu não conseguia controlar meu entusiasmo de estar conversando com ela.

- Muito obrigada por tudo, Senhor Rodrigo. Eu preciso ir. Já é quase 1 da manhã, e eu vou acordar às 4 horas para trabalhar.

Me assustei com a informação. Se soubesse que estava roubando o seu tempo de sono, não tinha convidado para ficar mais um pouco.

- Ah... Me desculpe, Helena. Se eu soubesse não teria te importunado, mas eu estava me sentindo sozinho e...

- Não se preocupa senhor Rodrigo - Ela disse, dando um belo sorriso. - Eu não teria ficado aqui se não quisesse.

Logo que ela disse isso, pareceu ter se arrependido, abaixou os olhos parecendo envergonhada. Se levantou e guardou o pouco de sorvete que sobrou, estava prestes a lavar as taças, mas eu impedi.

- Onde você mora?

Ela já estava rumo a porta de saída, quando eu perguntei ela parou um instante como se tivesse tomado um susto e virou em minha direção para me responder.

- Estou morando na padaria da esquina. A dona Maristela foi muito gentil e me deixou morar lá por umas noites e trabalhar na padaria. - Respondeu falando mais baixinho do que a poucos minutos atrás.

A história dessa garota me intrigava mais a cada minuto. Estava disposto a saber tudo sobre ela.

- Se tem emprego, por que faxinar de noite?

Ela deu um suspiro pesado.

- Trabalho na padaria para comer e ter teto. De noite vou pegar as 'faxina' para ter dinheiro para comprar roupa e sapato para minha filha e 'pra eu' começar a ajeitar a minha vida.

Apenas assenti. Não vivia na pobreza, mas já passei longos meses me sustentando com o mínimo, sabia o que ela estava passando.

- Vou te acompanhar, está muito tarde e é perigoso.

Ela me olhou divertida.

- Não precisa. Não tem perigo aqui. Obrigada, senhor Rodrigo. Nos vemos na próxima sexta.

- Me chame apenas Rodrigo. - Disse dando uma piscadinha.

- Tudo bem, Rodrigo. - Ela falou com o rosto iluminado já deixando o meu apartamento.

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