CAPÍTULO 8

345 100 12
                                    

HELENA

Eu estava com os pés descalços, pois perdi os chinelos quando fui arrastada pela escadaria do morro. Estava sentada na laje mais alta do morro, que era a minha casa a semanas atrás. Tentei limpar os pés ensanguentados por bater nos degraus enquanto subia.

Sabia que aquele dia estava próximo, e me preparei muito para o momento. Estava pronta para encarar o meu pior inimigo, o meu próprio marido.

Maiky subiu na laje e me encontrou no chão, machucada, com o olhar inexpressivo, observou a cena. Focou o olhar em dois de seus capangas ao meu redor.

-Quem machucou ela?

A sua voz era muito rouca e emanava um poder sem igual.

- Chefe, desculpa, ela se machucou quando a pegamos...
- Foi subindo pela escada, mas foram só alguns arranhões nos pés e...

Ambos os capangas tentavam se desculpar, sabiam que o chefe era muito rigoroso quando eu era o assunto.

Maiky sussurrou algo no ouvido do seu braço direito que acabava de subir a laje, este levou os dois capangas para longe. Engoli a seco, sabia que nunca mais os veria. Ninguém podia machucar a esposa do chefe do morro, só ele mesmo.

- Então tu decidiu me abandonar? Eu que te dei segurança e só te peguei quando virou mulher de verdade? Te fiz minha mulher e dei a honra de ser mãe da futura comandante de todo o morro.

Ele cuspia cada uma das palavras na minha cara. Tremi cada parte do meu corpo, ele andava de uma lado para o outro no pequeno espaço. Ele me olhava com um ódio que nunca vi na vida. Levantei e encarei o homem, sabia o que dizer, ensaiei por muitos dias e estava pronta para colher as consequências.

- Não posso mais continuar aqui. - Quebrei a pouca distância entre nós e tomei coragem para me aproximar. - Me perdoa, mas com a morte da Naty... - Comecei a chorar compulsivamente com medo do que viria.

Maiky arregalou os olhos negros e me encarou com um ódio descomunal. A única coisa que amava mais do que eu, era a nossa filha Natália. "Tão esperta pra 5 anos, vai ser a rainha do morro", era o que ele sempre dizia.

- O que tu fez a com a minha filha?

A ira o cegou. Ele puxou os meus cabelos e me levou até a parede, muito chamuscada, esfregou o meu rosto, fazendo vários arranhões na minha face.

- É mentira sua. Você está mentindo pra mim sua vadia..! - Ele se recusava acreditar.

Engoli a dor. Sabia que precisava ser racional. Vivi desde os 6 anos com aquele homem e agora com 21 anos o conhecia muito bem. O rosto ardia, o sangue quente já estava molhando a minha blusa. Mas eu respirei fundo e continuei...

- Você sabe Maiky, a menina estava doente. Pegou pneumonia. Ficou internada por dias. Até que o seu corpo não aguentou. Tenho comigo o atestado de óbito, para não dizer que eu estou mentindo.

Maiky puxou o papel dobrado que antes estava no meu bolso e leu cada palavra. Era como se uma tortura eterna estivesse começando em sua vida. Amava muito a filha.

- Se isso for falso...

Começou a dizer e se preparar para dar me dar um aviso. Eu sabia que ele queria me machucar o bastante para eu não conseguir sair do morro.

Esperei o primeiro murro, mas este não veio. No lugar disso um alerta foi acionado e o tumulto começou.

A polícia pacificadora e o exército entraram no morro e começou a troca de tiros. Maiky correu para a baixo para reunir os seus homens. Momentaneamente me esqueceu.

Eu precisava de apenas uma oportunidade para fugir dali para sempre. Quando vi que Maiky saiu para o confronto. Corri mais do que nunca na vida. Com os pés descalços e muito machucada, não queria pensar em nada. Apenas em chegar nos pés do morro.

Tiros, gritos, pessoas correndo para salvar as suas vidas. Eu não queria olhar ninguém, foquei em correr e entrar em ruas escondidas que conhecia desde criança.

Minutos depois consegui chegar ao pé do morro. O confronto acontecia do outro lado e parecia que o fim estava muito longe.

Me permiti respirar por dois minutos e fui até um pequeno beco ali próximo. Estava muito escuro, mas eu sabia onde procurar. Abri a tampa de uma caixa d'água que estava vazia, e ali estava a única coisa que importava na minha vida.

Minha pequena filha Natália estava assustada. Precisou passar o dia inteiro escondida. Mas ninguém a descobriu. Fiz uma prece silenciosa, pois a minha filha estava bem. Tinha deixado algumas besteiras para comer e água. Quando precisei pôr o meu plano em prática e ser capturada de propósito pelos capangas do meu marido. O atestado de óbito falso foi difícil de ser conseguido. Mas agora eu estava a um passo de ter uma vida segura, longe de toda aquela violência.

- Não tenha medo, a mamãe está aqui.
- Tiro - Natália disse apertando os ouvidos.

Eu a tirei da caixa d'água e a fiz subir em minhas costas. Coloquei um casaco grande que escondi junto com a criança mais cedo e a envolvi por completo. Sabia que seria difícil a menina respirar assim, mas era o único jeito de sairmos vivas daquele pesadelo.

Sai apressada do morro, sentindo a respiração quente da minha filha na nuca. Andei até as margens da avenida e fiquei aliviada quando entramos em um táxi. Embora não tivesse para onde ir e apenas 200 reais no bolso que roubei do meu marido durante os últimos meses, me sentia segura e feliz pela primeira vez na vida.

A Canção Perdida ✔️Onde histórias criam vida. Descubra agora