CAPÍTULO 68

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HENRIQUE

Quando entrei naquele local foi como ser transportado para os anos 90. Cada pequeno detalhe parecia fazer parte de uma vida antiga, contudo atemporal. Senti um arrepio percorrer a minha espinha, dando sinal a um sentimento adormecido a tanto tempo. Respirei fundo e já decidido, dei mais um passo por uma porta de correr cor de esmeralda.

A melodia preenchia o ambiente, o cheiro característico de incensos florais, velas vermelhas e cortinas pesadas de cor rubro destacava o local aconchegante. Sentei-me em uma poltrona, a única vazia. Deixei o meu corpo sentir o conforto do estofado, enquanto eu analisava toda a cena que dispunha ao meu redor. Havia tantos casais, que o espaço já pequeno, parecia ainda menor. Era uma atmosfera de tranquilidade e pitadas de felicidades tão alucinantes, que mal consegui permanecer com o semblante que carregava nos últimos três meses.

Já sem controle, deixei que os músculos da minha face fizessem o seu trabalho em transparecer o sentimento que explodia no meu coração, no exato momento que a vi no meio daquela pequena multidão.

Ela estava com um vestido vinho que ia até os joelhos. O tecido emoldurava os contornos do seu busto e cintura, até cair livremente por suas pernas. Nos seus pés, uma sandália alta, preta, com um salto fino. Joias adornavam seu pescoço fino, brincos grandes destacavam com o seu cabelo negro peso em um coque bem arrumado. Seus olhos de cor negra, brilhavam alegremente ao som do ritmo que o tango compunha. Sua boca foi pintada na cor vermelho sangue, deixando a sua pele pálida com aspecto jovial.

Por um momento senti a minha idade me trair, não sabia mais o que era a realidade e o que era a fantasia que minha alma tanto ansiava nos últimos dezenove anos. Era como um sonho vívido, apenas um pensamento que tinha ganhado a mais linda cor avermelhada, destacando uma vida de puro luto.

Ela percebeu que eu estava ali, me olhou no fundo dos olhos e sorriu provocantemente. Logo depois, voltou a dar aula aos seus alunos daquele turno. Casais de variadas idades e orientação, dançavam com leveza a apaixonante canção. Queria tanto um sinal de que não estava dormindo, de que aquela cena estava acontecendo na vida real. Precisava saber se Amanda estava ali, dançando como antigamente, sendo professora no seu antigo estúdio de danças, mesmo local que nos conhecemos mais de vinte anos atrás.

A resposta veio como um alerta gracioso, ouvi a sua voz próxima na medida que abri os olhos: - Henrique.

Levantei-me rapidamente da cadeira e fiz menção em abraçá-la, porém... me contive. Notei um brilho diferente nos seus olhos quando ela afirmou: - A aula acaba em quinze minutos.

Eu assenti com a cabeça. Estava tão próximo da mulher que me conquistou, que podia sentir o seu perfume adocicado pregar na minha roupa. Ela virou de costas, e eu sabia que precisava agir. Então, tentando manter a voz controlada, apenas disse: - Vamos tomar um sorvete?

Ela parou de andar, parece que a pergunta chegou de surpresa. Ela balançou a cabeça confirmando que sim, e logo foi continuar a sua aula.

Permaneci sentado na poltrona, vendo cada passo ensinado. Mesmo sem querer, não pude conter as minhas memórias. Durante os últimos meses, desde o dia que Luna foi enterrada, eu não consegui ter uma conversa com Amanda. Fui surpreendido, não vou negar. Pensei que minha esposa fosse se entregar naquela vida depressiva que viveu durante quase duas décadas, mas para a minha surpresa, ela enterrou a nossa filha junto com o passado de luto.

Toda a nossa vida mudou, porém eu entendi que ela queria a todo custo viver, e viver bem. Sem medicamentos pesados, consultas prolongadas, tentativas de tirar a própria vida... na realidade, ela parecia querer viver como nunca antes quis. Talvez toda essa força fosse por nossas filhas, porém... eu não consegui viver isso.

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