CAPÍTULO 70

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HELENA

- Penúltimo Capítulo -

Quando ouvimos gritaria do lado de fora da nossa casa, alguns tiros em comemoração, música alta (tantas batidas diferentes, que juntas formavam uma gritaria sem fim), também presenciávamos vigílias em igrejas no morro, louvando o nascimento do menino Jesus, foi o momento que minha perna molhou com um líquido morno. Eu não sabia como agir, era apenas uma criança, mas obviamente eu sabia o que estava acontecendo, consegui alertar o meu marido dessa forma.

_ A criança "tá" nascendo. - Disse, tentando falar mais alto que o imenso barulho que ouvíamos

Daquele dia eu recordo a dor intensa no pé da barriga, a fadiga com respiração pesada que Maiky exalava ao me carregar escadaria abaixo. Lembro do seu descontrole e raiva quando soube que não havia médico disponível e que a sua filha nasceria na recepção suja de um hospital público. Ele repetia diversas vezes que nada de ruim aconteceria, que ele resolveria tudo.

Confiei em suas palavras e com auxílio de pessoas esperando atendimento, me deitei no corredor e fiz a força necessária que meu corpo gritava. Demorou, demorou muito... parecia que essa dor não terminaria. O misto de emoções se intensificou quando eu percebi que Maiky ameaçava o pessoal do hospital e que gritava xingamentos que os matariam. Eu apertei os olhos, querendo sumir daquela situação. Mal sabia que era apenas um dos indícios do monstro que ele logo se tornaria.

Senti que mãos me puxavam do chão e eu era colocada em uma cadeira de rodas. Não consegui sentar-se apropriadamente, tamanha era a fraqueza. Ouvi de longe ele gritar, que se eu ou a criança morresse, ninguém sairia vivo daquele hospital.

"Empurra, empurra Helena. Você é forte. Foi forte na hora de fazer, é forte na hora de parir".

"Ela é a mulher de um bandido, se continuar falando assim vai amanhecer com moscas na boca". - Advertia outra pessoa.

Nessa enxurrada de falatórios, fiz mais força e mais força. Eu achei que meu limite tinha sido atingido, meu corpo não respondia mais as minhas próprias vontades. Mas parece que o corpo de uma mulher já nasce sabendo o que é para fazer... pois mesmo sem querer, continuei fazendo força. Até que a dor foi retirada de uma forma violenta. Mas dali em diante... nada mais importava.

Foi naquele dia, vinte e cinco de dezembro, nas primeiras horas do natal, que a minha Natália veio ao mundo. Era pequena, quase do tamanho de uma boneca que poucos anos antes eu tive.

_ O que você é capaz de fazer por ela? - Perguntei ao Maiky quando ele pegou a filha no colo pela primeira vez.

Com a voz baixa e uma onda de calmaria depois da tempestade, ele respondeu: _ eu mataria e eu morreria pela minha princesa.

E foi exatamente a lembrança dessa frase que fez o meu corpo tremer todo quando eu o vi.

Decidimos fazer uma comemoração com os amigos da Natália na escola, no último dia de aula. Combinamos de levar decoração, bolo, doces e salgados às 3 da tarde. Eu só a deixaria na escola, em horário normal e voltaria para a padaria a tempo de terminar de decorar o bolo de unicórnio. Porém, quando ela entrou na escola, eu percebi que estava sendo vigiada.

Do outro lado da rua, a figura encostada na parede com os braços cruzados me encarava. Eu pensei ignorar, talvez correr para dentro da escola novamente, mas de alguma forma... eu atravessei a rua e fiquei na sua frente.

_ Como achou a escola dela? - Perguntei diretamente, tirando uma força que eu nem sabia que existia em mim.

_ Calma Helena, não quero brigar. - Disse ele, jogando um cigarro recém terminado direto no chão e apertando com a ponta do pé para ser apagado.

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