CAPÍTULO 32

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AMANDA

Um dia eu sonhei que tudo não passava de um pesadelo, mas eu sabia que o sonho não era real. No sonho um filme passava em minha mente, eu era mera telespectadora.

A realidade nua e crua era pior do que qualquer pesadelo que eu poderia ter, então no momento decidi me concentrar em recordar daquele estranho sonho, pois nele eu me sentia viva novamente. Tinha passado 6 anos que Luna foi sequestrada e a esperança dela estar viva já era considerada mínima.

No sonho eu via o seu aniversário de três anos. Essa festinha já estava sendo preparada, mas ela nunca teve a oportunidade de fazer parte. Depois, em um salto temporal, uma doce risada ecoava por minha casa. Corri pela sala e fui direto ao quarto da Luna, completamente diferente do que ela havia deixado. As paredes, que antes eram cor de creme e rosa bebê, estavam com um verde e lilás muito forte. Havia por todo lado fotos de celebridades adolescentes. Na sua cama, que agora era de casal, estava um violão branco. Eu olhava para trás e ela estava sentada em uma cadeira virada para o espelho se maquiando. Nesse sonho ela parecia não me ver, mas eu não pude controlar a emoção de vê-la com quinze anos.

O tempo passava novamente e o meu corpo era arremessado até uma cerimônia. Uma porta se abria e uma linda mulher com um vestido de renda e crochê branco, entrava na igreja. Ela estava se casando, feliz, com um lindo homem que a amava. Muito emocionada, queria ficar o resto da vida vendo aquela cena que eu sabia que jamais se tornaria real. Mas novamente o meu sonho me levou distante. Muito empolgada, fiquei olhando ao meu redor procurando a Luna. Muito curiosa, queria saber onde ela estava naquele momento, com quantos anos e fazendo o que exatamente. Mas eu me encontrava em um jardim com árvores pesadas e centenárias. Corri por entre as plantas e flores alaranjadas e marrons, mas só consegui chegar até um campo de gramas mal cortadas. Ali algo me chamava atenção, eu me abaixei e peguei um pingente. Ao perceber do que se tratava, meu corpo parou de responder ao meu comando e paralisou. A medalhinha era uma nota musical banhada a ouro. Atrás de mim, passos ficavam mais próximos.

Olhei assustada, mas creio que nunca estaria preparada para o que veria a seguir. Era um homem, cujo rosto estava negro por sombras e eu não podia identificá-lo. Carregava Luna, ainda com 2 aninhos, em seu ombro. Eu percebia que onde estava os meus pés, a terra se mexia e pulei para o lado em total pânico. Ali ele colocava a Luna para dormir embaixo da terra para sempre.

Esse sonho se repetiu por uma longa data. Sempre da mesma forma. Sempre vendo as mesmas cenas. Eu não posso mentir em dizer que eu não gostava de sonhar com tudo isso. Pois, só de ver alguns momentos que não teria com a minha filha, poderia aos poucos, apagar as lembranças do final desse sonho. Por saber o que iria acontecer, estava preparada sempre, para fechar os meus olhos nos últimos dois minutinhos de sonho. Era um preço caro, mas aceitável a ser pago para ver a minha filha novamente.

Então, conhecer a Helena me deu a esperança que eu pensei que jamais teria novamente. Eu senti nela a alma da Luna. Senti que era ela e esse sentimento de mãe não podia estar errado. O seu cheiro era algo que mais me convencia de que eu estava no caminho certo. Era marcante o cheiro da minha filha. Vê-la novamente naquela padaria trabalhando duramente, me vez ver todo o tempo que eu perdi. Sei que não foi a minha culpa não tê-la criado, mas eu me culpava mesmo assim, por não estar presente e ter impedido que um serial killer a levasse.

Helena tinha uma história de vida totalmente diferente daquela que eu idealizei para a Luna. Quando descobri que estava grávida dela, não pude deixar de planejar cada ano da sua vida até o momento que ela mesma estaria grávida e planejaria o futuro de seu filho. Eu queria que a Luna tivesse estudado e por mais que a Helena não falasse diretamente que não sabia ler, eu percebi ao me deparar com ela recebendo um carregamento de refrigerantes para a padaria. O entregador dizia para ela assinar após ler. Ela não percebeu que eu estava observando, mas apenas disse que era analfabeta, ainda aprendendo as letras. Ela pegou atrás do balcão uma caminha de tinta e colocou o dedo molhando-o de azul escuro, após feito ela carimbou na nota do entregador e este foi embora.

O nó de ter descoberto algo tão pessoal dela, não saia da minha garganta. Eu não achava certo contar que eu sabia ou prestar alguma ajuda nesse momento. A minha vontade era de pegá-la no colo, como eu fazia antigamente, e levá-la para a minha casa. Ninar ela durante horas e contar historinhas que ela mais amava, mostrando cada letra para ela começar a se familiarizar. Mas a realidade é que esse tempo já havia passado. Agora ela era adulta, uma mulher do meu tamanho e com uma filha. Eu aceitei não conhecer a minha neta até que ela contasse tudo para a criança. Aceitei, pois entendi que finalmente eu era feliz novamente.
Mal eu sabia que essa felicidade poderia acabar a qualquer momento.

Helena viveu uma vida aquém do que merecia. Pouco ela me contou no dia de hoje, mas a minha imaginação voou a solta quando soube que ela era casada com o chefe de um dos morros mais perigosos do Rio de Janeiro. Novamente senti muito medo de algo acontecer com elas, mas Helena me garantiu que elas estavam seguras.

Sei que com o tempo eu vou conhecê-la melhor. Então decidimos não esperar mais e realizar o exame de DNA logo no dia seguinte, bem cedo.

Nesse momento, estou pronta e esperando um táxi para ir buscá-la na padaria. Vamos até o laboratório confirmar aquilo que o meu coração já sabe ser real. Não contei nada para o Henrique, pois assim que cheguei em casa eu me tranquei no quarto de hóspedes e ali permaneci até o amanhecer. Não queria vê-lo nesse momento, pois ele acreditava que uma impostora poderia ser a Luna e em decorrência estava perdendo o milagre de ter a nossa verdadeira filha novamente.

Ouvi o interfone tocando e fui depressa atendê-lo. As palavras de "pode deixar o táxi entrar" que estava prestes a sair pela minha boca, morreram quando eu vi duas pessoas entrando pela porta principal.

Henrique estava com uma expressão indecifrável e isso me causou um certo receio. Ao seu lado Raquel estava chorando. Eu disse para o porteiro esperar e me virei para encará-los e saber o que eles queriam.

- Eu preciso sair agora Henrique. Não tenho tempo para essa impostora nesse momento. Vou até o laboratório realizar o exame de sangue da nossa filha.

Henrique suspirou pesado e entregou um envelope já aberto. Quando eu tirei uma carta dali, senti minhas pernas falharem. Fui arrastada até o sofá e sentei para não ceder ao chão. Meu marido cancelou o táxi e sentou na minha frente, segurando as minhas mãos.

- Sei que pensa que Raquel é uma impostora, mas o exame confirma. Ela é a nossa verdadeira filha.

Raquel ainda estava parada na porta e eu em choque não conseguia fazer mais nada. Apenas apertar o papel que comprova que eu estava errada. Pedir desculpas e abraçá-la poderia ser o primeiro passo. Mas apenas fechei os meus olhos e durante um longo tempo não consegui mais abri-los.

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