CAPÍTULO 3

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HENRIQUE

A vida da tantas voltas, que as vezes não conseguimos acompanhar. Eu não cogitava mentir para a minha esposa mas a minha mente vagava em caminhos tortuosos.

"Como seria? Uma estranha se passando pela minha Luna?"

Cada pensamento me torturava.

Passar o dia no escritório não foi fácil. Minha cabeça girava com a possibilidade de uma mentira tão cretina como essa. Mas quando imaginava ver o sorriso de Amanda, a possibilidade não era tão absurda assim.

Durante esses 19 anos, Amanda entrou em um estado profundo de depressão.

Ajeitei-me em minha cadeira e fechei os meus olhos pesadamente. Não queria relembrar dos últimos anos, de tudo que vivi ao lado de Amanda após o assassinato de nossa filha. Mas os meus pensamentos me traíram.

Em pouco tempo, revivi os piores momentos da minha vida. Como um filme que passa tão rapidamente, que você apaga instantaneamente.

Já no dia do sequestro, na noite do ano novo, Amanda deu sinal que a sua vida havia se esvaído.

Eu procurava ajuda com policiais civis e militares. Percorria a casa, o condomínio, gritava por Luna. Cada pequena pista, eu agarrava como se a vida da minha filha dependesse disso. Mas a pior parte é que no fundo eu sabia... Sabia que a minha filha não tinha mais vida.

A Nota aterrorizou a cidade do Rio de Janeiro por duas décadas. No total foram encontrados 80 bilhetes pretos com uma nota escrita em branco 🎵 e para cada bilhete, uma criança fora levada.

A minha Luna foi a última.

A polícia não tinha explicação. Ninguém sabia o que acontecia com as crianças raptadas, nem se havia um padrão. Nunca houve nenhuma resposta no mar de perguntas que desolaram 80 famílias.

Por meses, eu lutei com todas as minhas forças para achar Luna. Mas um dia as minhas forças acabaram. Cedi. Com essa entrega, Amanda também se entregou.

Me afundei no trabalho. Defendi os piores políticos que respondiam na esfera criminal. Assim, minha fortuna triplicou. Mas cada dinheiro que entrava, era um pedaço da minha alma que saía.

Ela se afundou na depressão. Em decorrência, viciou em remédios controlados. Mas com o tempo, nem isso tinha efeito.

- Henrique, posso entrar? - Danielle estava parada na porta.

Apenas assenti.

Tão elegante e tão querida. Danielle sempre foi uma parceira em minha vida. O casamento nunca foi baseado no amor, mas sim em uma real amizade. Então, o divórcio foi inevitável, mas a amizade continuou mais forte que nunca.

- Henrique, vá para casa meu querido. Eu cuido de tudo. André me ajudará.

Eu não queria conversar ou responder nada, mas sabia que precisava de um tempo longe dali, embora ainda fosse segunda-feira e a noite ainda estivesse longe.

André, o seu secretário, entrou na sala logo em seguida. Nos explicou os posicionamentos de nossos atuais clientes em potencial. Eu sabia que podia confiar em Danielle. Então aceitei ir para casa.

🎵

Ah, os pensamentos. Enchem a sua cabeça a contragosto e tudo passa a se movimentar no automático.

Eu acreditei na minha primeira psicóloga que afirmava que a dor da perda de um filho não ia embora, mas com o passar do tempo a vida continuaria.

Hoje eu sabia que era mentira.

A dor de perder um filho não passaria e a minha vida não continuaria.

Para despertar de meus pensamentos mais longínquos, percebi que o meu celular apitava insistentemente. Olhando pelo visor do carro, atendi a chamada via Bluetooth enquanto dirigia para a minha casa.

-Você sabe que estou ligando, têm que me atender!

A voz de meu filho ecoava pelo carro. O Transtorno do Espectro Autismo lhe deixava aflito quando as coisas não saiam do jeito que ele planejava. É claro que no passado, quando Guilherme era criança, era muito mais difícil.

Agora adulto, Guilherme morava sozinho em um pequeno apartamento perto do condomínio que eu e Amanda, Danielle e Paulo, morávamos.

- Desculpa meu filho, hoje eu não me sinto bem.

Eu disse tentando desabafar, mas Guilherme às vezes não entendia o comportamento empático tão bem.

- Quando eu não me sinto bem, a mamãe fala que eu bem. Daí eu fico bem.

Sorri do comentário puro de meu filho.

- Só é para ir na galeria. Eu vou expor minhas artes. E leva Amanda. Mas não pode ir triste, porque são artes alegres.

Na mesma agilidade, Guilherme desligou o telefone sem mais explicações.

Bom, eu entendi o recado. Guilherme estava convidando para ir na galeria prestigiar o seu trabalho. Como autista, ele sempre teve uma área que mais se destacou. Através da pintura em quadros, ele se expressava. Contava em forma de simetria, o que passava na cabeça de um autista. Era reconhecido e prestigiado por isso. Sendo ele, o meu maior orgulho.

Mas precisava lembrar de perguntar para Danielle o dia e horário da exposição

Ri novamente. Guilherme ainda falhava quando o assunto era explicações.

Tão rapidamente que o meu humor estava colorido, este se enlutou ao ver uma cena que conheci anos antes.

Minha casa estava em absoluta escuridão.

Em questão de segundos, corri para o quarto da minha filha.

Já vivi isso antes, sabia o que encontraria.

Amanda estava deitada na cama de Luna. De primeiro momento, qualquer um diria que ela repousava. Mas eu sabia que não. Pois ela sempre temera o escuro e sempre havia alguém a vigiando ela para que não acontecesse como da última vez.

Por algum motivo, ela conseguiu cometer o ato. Uma fina linha de sangue caia no chão de madeira, ela saia de seu pulso e morria no chão.

Forcei os meus pés a agirem, correndo em direção de minha esposa. Peguei-a no colo, rezando para que dessa vez ela não tivesse conseguido êxito em cometer suicídio.

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