CAPÍTULO 63

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A NOTA

CAPÍTULO PERTURBADOR PARA PESSOAS SENSÍVEIS

Estava extasiado com a perfeição da criação. Depois que plantei a minha última canção, naquele jardim regado com o luar, sentei no chão e contemplei toda a sinfonia. Apertava cada gravador na ordem correta, onde suas vozes infantis preenchiam o lugar seguro e dava-me a satisfação de ter concluído a minha missão.

Para este fim, escolhi muito bem o meu anjo. Não podia ser qualquer um, eu não poderia macular a imagem de cada anjo que eu fiz, finalizando com alguém que não seria uma Canção. Então, durante meses eu analisei as possíveis candidatas. Mas Luna foi escolhida através de um sonho. Creio que Deus Pai me mostrou o caminho, mesmo distante da paróquia, ainda sentia um imenso carinho pelo evangelho. Seguindo suas instruções de como terminaria o meu destino, fui buscar em uma noite de ano novo, a minha última canção.

Luna era a mais nova, a mais pura, ingênua e incrivelmente angelical menina que teve a oportunidade de marcar gerações. Depois de cuidar para que o mal não atingisse ela e nem um outro menininho que havia no quarto, eu a coloquei deitadinha no meu estojo de violoncelo, precisei passar um pouco de remedinho em sua boca, para ela dormir um sono tranquilo até chegarmos no local.

Como de costume, fiz todo o procedimento. Ela foi perfeita, magnífica na entrega de sua voz. Eu senti tanto orgulho, quando a pus a dormir pela eternidade. Chorei enquanto a plantava no jardim das canções, meu último anjo agora descansava para a glória. Reguei cada canção, alinhei seus pequenos crucifixos e passei algumas horas contemplando aquela paisagem, até o sol começar a dar energia ao meu plantio.

Toda a missão foi concluída quando ouvi a sinfonia de suas almas. Aquilo foi perfeito. Durante aquele dia, cuidei de cada detalhe para as canções serem descobertas e como suas vozes foram capazes de mudar vidas. Limpei a cabana e arrumei os caderninhos, pequenos diários em ordem cronológica. Os gravadores foram colocados com cuidado em uma profunda gaveta.

Durante todo aquele dia eu não me alimentei, mas não precisava. Minha alma estava bem cuidada, sabendo que eu consegui, que eu finalizei a sinfonia e a missão da minha vida chegou ao fim. Só faltava um pequeno detalhe para deixar tudo em ordem para o dia da descoberta, precisava guardar o caderninho que mostraria toda a minha obra para a pessoa que o achasse. Iria levá-lo durante a noite na igreja Nossa Senhora da Guia, onde tudo começou.

Infelizmente, essa parte do plano foi frustrada e o caderninho precisou ser enterrado no meu próprio quarto. Nem tudo na vida pode ser perfeito, e 24 horas depois de ter finalizado minha canção, eu fui abandonado. Chegando em casa percebi que algo diferente estava para acontecer. Rosalina carregava uma mala pesada e foi de encontro comigo na porta.

- Onde esteve o dia inteiro? - Perguntava ela com um tom cruel em sua voz, se soubesse que eu estava fazendo uma obra tão linda, não brigaria comigo sem motivo.

Eu nada respondi, sentei no sofá e tentei relaxar.

- Você ainda não percebeu que eu estou te deixando? - Eu a encarei, ela parecia querer muita atenção. Naquele momento eu ainda não sabia que ela falava sério. - Eu estou indo embora, não dá para viver com você.

Ela largou a mala no chão e se aproximou, seu olhar estava em rubor.

- Você desaparece durante a noite, sei que trabalha com música. Mas sei que está escondendo algo e não quer dizer. Eu sei que você tem outra, tem uma amante.

Eu ri com a sua ingenuidade, eu nunca a trai. Rosalina foi, é e sempre será a unica mulher na minha vida. Mas a risada a levou no limite.

- Estou indo embora e nunca mais quero lhe ver.

Ela retornou para a porta e a abriu, abraçando a sua bagagem. Se eu soubesse que era verdade, meu Deus... se eu soubesse que não era uma crise, mas que ela me deixaria para sempre, eu teria evitado. Mas não fiz. Estava ainda tão eufórico com as minhas canções, que a deixei sair pela porta. Fechei os olhos e sorri com prazer por tudo o que conquistei durante vinte anos sendo a Nota.

A última frase que ouvi de Rosalina, foi: - Cuide da menina, ela é a sua filha.

Abri os olhos e encarei uma pequena criança saindo do nosso quarto. Ela estava com uma camisolinha branca e o cabelo negro caído nos ombros, seus olhos escuros estavam cheios de lágrimas, mesmo com apenas dois anos, ela parecia notar que a mãe estava nos abandonando.

Eu chamei a pequena a sentar-se no sofá comigo, tirei da minha mochila um presente que peguei no quarto da última canção, algo que embalaria a vida da minha filha para sempre.

A criança deitou no meu colo quando eu liguei a caixinha musical com uma bailarina, ela dançava em rodas enquanto cantava: "foi no mês de dezembro..." e assim, Helena dormiu nos meus braços.

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