CAPÍTULO 42

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AVISO: O capítulo a seguir pode ser perturbador para pessoas mais sensíveis. Recomendo que leia com cautela. A NOTA explicará com riqueza de detalhes o seu Modus Operandi.

A NOTA

Em 1824 na cidade de Viena na Áustria, foi apresentado pela primeira a vez a Nona Sinfonia de Beethoven e regida pelo diretor musical Umlauf. Você deve estar se perguntando... Por que o próprio Beethoven não regeu a sua mais magnífica obra? A resposta se dá a sua surdez avançada, sendo contemplado apenas com um lugar de honra no palco para vislumbrar tal apresentação.

Levado aos pés da Santa Maria na porta de um convento no ano de 1960, um bebê que acabou de nascer embalado em uma manta verde-oliva. Eu não estava preparado para aquele mundo, nasci pequeno e doente, provavelmente minha mãe achou que eu não sobreviveria e por isso me entregou. Padre Francisco relatava que eu chorava dia e noite, mas todas as vezes que o sino soava, eu me calava. Logo as freiras descobriram que a calmaria vinha com o som de música.

A fascinação por essa arte aumentou nos anos que seguiram. Inerte ao mundo à minha volta, procurava a todo custo um ritmo que embalava o meu momento. Por lares passei e nenhum fiquei. Padre Francisco dizia que se Deus assim permitiu, significa que eu estava destinado a ser um missionário que transmitirá a Sua palavra de amor e sabedoria.

Fui encaminhado a esse destino puro e glorioso e sem questionar eu aceitei tudo o que nele implicava. Aquele convento era o meu lar, ali fui criado e abençoado todos os dias da minha vida. Mas após terminar o ensino regular público, fui encaminhado à Arquidiocese de São Sebastião. Estava maravilhado com os ensinamentos mais profundos da religião amada, mas sem conseguir deixar de lado a envolvente canção que a minha alma necessitava.

Com graça e bondade fui permitido interagir com o Coral da Igreja Católica de Nossa Senhora da Guia. Senti minha vida sendo preenchida no dia que apresentamos Glória, glória, aleluia; para uma grande multidão de fiéis. Mas algo ainda faltava para a perfeição da minha vinda a terra. Acreditava que Deus me fez para um propósito especial, como uma tarefa que é destinada a um dos seus mais queridos filhos.

Após ter contato com o poema Alegria e decifrar os seus versos e encaixes na Nona Sinfonia de Beethoven, eu passei a ser A Nota. Quero admitir que a minha vida passou a fazer mais sentido.

No natal de 1979 tive a minha primeira oportunidade. Faltava cinco anos para eu me tornar padre, mas como já era um especialista de Coral, fui um convidado de honra a comparecer na apresentação de natal das crianças da pré-catequese da Igreja de São Domingos. Crianças de 6 aninhos subiram no palco vestidas de anjos e fazendo o coral para o mais puro e verdadeiro anjo que já vi. Uma garotinha da mesma idade fazia a primeira voz e emocionava a todos nós presentes com a Canção Noite Feliz. Não pude deixar de reparar na particularidade da coincidência de estar ao lado do padre, sendo o principal convidado daquela apresentação e comparando o que aconteceu em 1824 quando Umlauf regeu pela primeira vez a nona sinfonia ao lado de Beethoven. Como uma luz esplêndida eu percebi que Deus estava me comparando a Beethoven, e assim eu precisava viver a altura. Ali eu recriaria a nona sinfonia, com as mais puras e belas vozes que eu pudesse recolher.

- Ela canta como um anjo - Inerte aos meus pensamentos e planos, o Padre Horácio me trazia a realidade com o seu comentário.

Não externei, mas no ato eu pensei que eu precisava agir logo. Enquanto anjo ela for, para o céu poderá retornar, mas se mulher se tornar... lá não será mais o seu lugar.

Apenas seis dias eu tive para dar início a minha criação. Deus construiu o mundo em seis dias e descansou no sétimo, mas eu não teria esse merecido descanso. Ninguém impede um padre de chegar perto de uma criança para abençoá-la, partindo desse princípio eu pude me aproximar ainda mais da doce Sílvia. Mas no dia que eu a salvei, eu não estava vestido de padre.

Ela foi a mais especial canção que eu recolhi, me emociono só de lembrar daquele doce dia que ela pôde retornar aos braços do Pai. Sílvia morava a duas quadras da igreja e eu precisei visitar a sua casa três vezes até entender como eu entraria para salvá-la. Na véspera do Réveillon, seus pais participaram da festa da igreja, muito devotos... eles decidiram virar o ano rezando para a Virgem abençoá-los. Um quarto de fenobarbital em um suco que eu lhe ofereci foi suficiente para a pequena criança sentir-se sonolenta e pedir para ir embora. Mas como a virada se aproximava, seus pais decidiram deixá-la dormindo em casa e voltaram para a reza.

Envolvido com a minha missão, entendi que a hora havia chego quando os devotos iniciaram o Rosário. Atrás da igreja eu tirei a batina e vesti uma roupa casual com um casaco pesado de frio negro com capuz grosso. Quando me dispersei da multidão, vi de relance os pais de Sílvia fazendo o sinal da cruz com o terço em mãos. Enquanto eu caminhava até a sua casa, imaginava cada "conta grande e pequena" para calcular o tempo que eu teria.

A rua de terra sem iluminação, me guiava até o meu destino com alguns fogos de artifício que preenchiam a noite com densas nuvens negras. A passos largos me aproximei da casa simples sem portão que abrigava o meu anjo. Seus pais haviam finalizado a oração do credo e com a proximidade da residência e da igreja eu ouvi os fiéis em uma única voz dizendo as suas crenças.

A igreja iniciou as "contas pequenas" rezando Ave-Marias, no mesmo instante que eu percebi que a porta estava trancada. Suas repetições de Marias foram sendo ouvidas enquanto eu retornava a pequena casa e achava a janela do quarto da minha primeira Canção. Meu coração batia desesperadamente quando eu entrei no quarto escuro e vi a pequena deitada em um colchão no chão, adormecida e sonhando com o seu resgatador. Pai Nosso começou quando eu a peguei no colo, deixando no colchão a minha assinatura. Aquele doce anjo se ajeitou no meu colo e parecia agradecer, mesmo dormindo, o meu ato de amor.

Voltei uma quadra em direção à igreja, até o furgão 1971 que comprei no dia anterior, que estava estacionado no terreno baldio da igreja com outros carros. Ali dentro havia o meu estojo de violoncelo que eu pude acomodar a criança até o horário certo.

Pouco tempo depois, eu estava vestido adequadamente para ajudar o padre Horácio a dar a primeira hóstia do ano 1980. Não consegui ver através dos fiéis os pais da Sílvia, mas soube que eles descobriram que seu anjo estava pronto para retornar ao Senhor, quando gritos foram ouvidos. A comoção de pessoas correndo temerosas e tentando achar Sílvia, me deixou incomodado. Eu queria gritar que não era para eles se desesperarem, que ela estava sendo salva. Mas me contive e esperei o momento certo para levá-la ao nosso local seguro.

Sílvia Maria Duarte acordou três horas depois. Ainda muito sonolenta perguntava da mãe insistentemente. Eu precisava finalizar logo a minha missão, pedi para ela cantar durante um minuto a suave canção e ela obedeceu, acreditando que após terminar eu a levaria para a sua mãe. Gravei esse minuto e sorri muito agradecido, aquele anjo havia se tornado a primeira Canção Perdida. O leite com o veneno da planta trombeta de anjo que eu cultivava no jardim daquela pequena cabana às margens da cidade deu maestria ao início da minha grande obra. Sem dor, sem desespero, sem machucar a criança, Sílvia tomou o leite e se deitou no meu colo. Seu pequeno corpo transparecia que sua alma estava a deixando, com muita emoção e felicidade eu não consegui me conter: derramei lágrimas de felicidade no corpinho da minha Canção enquanto ela estava indo até o Pai em forma do mais puro anjo que já vi.

A Canção Perdida ✔️Onde histórias criam vida. Descubra agora