§Capítulo 5§

55 6 0
                                    

Lylian


O som de algo caindo é o que me desperta e me levanto em sobressalto, logo encontrando as órbitas púrpuras brilhantes de Kalil e as prateadas de Fizun.

– Não estou em disposição de nada agora, o que vocês querem agora só terão depois que minha bateria social elevar, minimamente pelo menos. – digo tirando Fizun de perto de mim e me virando na cama.

Criança, já se esqueceu que você agora tem que disfarçar uma vida normal? Sua carteira de motorista está na sala junto com uma bolsa com dinheiro dentro e uma sacola para compras. Você tem que ir na cidade e se enturmar, mesmo que minimamente. – explica Kalil perto da estante do quarto com um pequeno pardal de madeira que havia deixado cair.

Expiro em exaustão e me obrigo a levantar, não é como se pudesse argumentar contra meu próprio Guardião, não como Jesy conseguia fazer.

Me levanto, como já estava com roupas minimamente boas para sair, apenas escovo o cabelo e os dentes. Ao terminar, desço para a cozinha, esta, que era mobiliada por apetrechos brancos e prateados.

A geladeira era de alumínio e os armários de madeira eram pintados em reveste branca, a pia era terminada em pedra preta e os talheres também eram de alumínio, dando a sensação de modernidade para o cômodo, o que era impressionante, uma vez que todo o restante da casa parecia antigo e decorado ao gosto de uma época tardada. Independente, ambos os estilos pareciam forçados para mim agora, uma vez acostumada com a casa “de campo” que Lucas construíra para nós.

Me dirijo para a sala de jantar e me deparo com minha antiga carteira de motorista em cima da mesa.

– Como conseguiram isso?

Pegamos na sua casa, junto com o dinheiro e os cartões de crédito de seus pais. – Fizun diz e, por breves minutos, paraliso. Meus pais. Ah, quanto tempo não pensava sequer nessa palavra...

Não havia sequer remorso na voz de Fizun ecoando em minha mente, nenhum sentimento ou compaixão, nada.

Ao lado da carteira estavam as chaves do carro, ignoro o olhar opaco dos Guardiões e recolho tudo e vejo também que havia uma coleira de cachorro e uma luva grossa de treinadores de pássaros selvagens.

– Para que isso? – pergunto pegando a coleira e a luva, logo mostrando para eles.

Vou ter que explicar novamente que temos que tornar tudo isso o mais real possível? Ande, apenas se prepare que nós cuidamos do resto. – Fizun manda e percebo que Kalil ainda não concordava com a coleira, pelo visto Fizun também não concordava com a corrente.

A raposa põe em si próprio a coleira e a corrente em uma das garras de Fizun. Ao terminarem, ponho a carteira, o dinheiro, os cartões de crédito e a sacola de compras reutilizável na bolsa de couro vermelho escuro e visto a luva. Não havia necessidade de os prender na coleira agora, então apenas pego a bolsa e me dirijo para a garagem, os dois sabiam o caminho até o carro, não precisavam ser conduzidos, sem contar que podiam literalmente voar, além de que ainda não desconsiderei a ideia que seria estupidamente mais fácil se eles estivessem invisíveis.

Abro a porta e tanto Kalil quanto Fizun se acomodam nos bancos de trás, ao fechar a porta, entro no banco do motorista e jogo a bolsa no banco do passageiro. Ao fechar a porta, dirijo até a estrada e vou em direção a cidade me guiando pela movimentação de almas. Era confuso, a movimentação era uma bússola ao mesmo tempo que, quanto mais me aproximava da movimentação, mais perdida me sentia, além de atordoada e me sentir anestesiada e dormente.

(...)
Chegando à “cidade”, que estava mais para bairro comercial por não ser tão colossal como são realmente as metrópoles, várias pessoas pousam um olhar rápido no carro que continuava avançando na velocidade permitida naquela estrada movimentada, mas logo tornavam suas atenções para a sua frente ou o celular, o carro não era moderno, a idade do automóvel o destacava dos demais. O barulho do movimento de pessoas e carros começava a ressoar em minha mente como um castigo, era alto, quase ensurdecedor, queria fazer aquilo parar, mas como? Não é como se simplesmente pudesse desligar meus sentidos do mundo ou os adormecer.

Sou diferente deles agora, ouvia perfeitamente cada palavra que diziam, os berros que os anunciavam no meio, as buzinas que despertavam os demais, os freios que paravam uns para mover outros, uma tortura, era exatamente isso que a cidade era, uma mórbida e cotidiana tortura contínua e desesperadora para o fim de manter bens e a fins.

De repente, os sons param de ser berrantes. O mundo parecia silencioso mais uma vez, finalmente mais uma vez. Ao olhar rapidamente o espelho erguido a minha frente, percebo o olhar de Kalil, o púrpura nunca pareceu tão cinzento como agora, sem cor, estava enfraquecido, mas por quê?

– Kalil, qual o problema? – pergunto mentalmente, a presença do Guardião em meu subconsciente demora a aparecer, mas aparece.

Esse lugar, essas pessoas, o barulho, odeio isso. – diz, a voz parecia esgotada, a viagem da noite anterior parecia finalmente ter pesado no Guardião. Fizun, por sua vez e como sempre, parecia indiferente a nós.

Me agradeçam depois. Vou bloquear as ondas por enquanto, pelo menos até toda essa bagunça se acalmar, mesmo que minimamente. – a voz do falcão ecoa em minha cabeça, serena e opaca, me questionava agora se Fizun era capaz de emitir algum sentimento além, até agora a única coisa que vi nele fora opacidade em relação a tudo e todos, além da indiferença gritante, mas tudo bem, talvez não tão indiferente a nós assim, do contrário não estaria tentando nos ajudar... Corrigindo, do contrário ele NÃO estaria nos ajudando, seja lá o que está fazendo para impedir que as ondas sonoras venham até nós no volume máximo, está ajudando mais do que eu imaginava.

– E posso saber como está fazendo isso? – pergunto, usando o espelho retrovisor para olhar o falcão.

Pude bloquear sua voz, o que você acha que me impede de bloquear sua audição em certa escala? – questiona, e não consigo responder, a sensação de seco na garganta me faz voltar a atenção para a estrada, nunca iria me acostumar com a indiferença na voz do Guardião.

Ao rodar perdida nas ruas, encontro um mercado e entro no estacionamento do mesmo, o estacionamento não era dentro do prédio do mercado, tão pouco aquele estacionamento era do supermercado, era de uma loja indie que se aproveitou para ter alguma renda com aquele espaço, ficava do lado de fora ao ar livre, logo, pego a luva e a guia da coleira.

– Última chance de mudarmos esse plano imbecil e vocês simplesmente ficarem invisíveis aos olhos dos indesejados. – digo me virando para os bancos de trás, tanto Kalil quanto Fizun não emitiam qualquer emoção no olhar.

Está determinada a nos fazer mudar de ideia, não é mesmo Lylian? Pois bem, quando atraímos vocês, por acaso, estávamos “invisíveis”? – questiona a raposa de repente, não expresso nada na face, apesar de ter sido desarmada ali.

– Não estamos em um zoológico, e eu posso ser presa por passear com espécimes como vocês, mesmo com a “legalização de cuidado” que vocês forjaram. – digo, apesar do argumento não ter sido exatamente bom, mas o suficiente para erguer o olhar vibrante de Fizun e Kalil, que nem por um segundo sequer desviou o olhar do meu.

Não podemos atrair os Herdeiros até nós se eles não se sentirem minimamente curvados a isso, a nós. Eles nos verem é uma chance de chamar suas atenções, de modo que se aproximem...

– E cair em suas armadilhas. – completo. Eu me arrependi de muita coisa na minha vida; ações idiotas de uma adolescente imatura, birras de uma criança de manha exagerada, mas nada me fazia ter mais arrependimento do que aquele maldito dia no zoológico, aquela mina, eu adorava raposas e lobos até aquele dia, após todos os acontecimentos até aqui descobri que prefiro coelhos, são quietos, não fazem bagunça como cães e gatos mas fedem mais do que ambos, tirando isso, que é algo muito fácil de resolver com um banho mensal, coelhos são fofos, macios, bons de ter por perto, e não dão tanto trabalho.

“Armadilha” não seria a palavra certa, mas já que interpreta assim, não serei eu quem irá se opor à sua opinião. – responde, ignorando os pensamentos que estava jogando para ele sobre aquele maldito dia, se não fosse por aquilo, meus pais estariam vivos.

– Então apenas calem a boca e se ocultem dos olhos indesejados, não tenho mais vitalidade de paciência para isso. – digo e saio do carro sem os Guardiões.

Me viro rapidamente para olhar para os Guardiões e, para minha singela surpresa, tanto o falcão quanto a raposa flutuavam no ar em sua forma plasmática. Sem a escuridão em que podiam brilhar, submetidos a luz do dia aquela forma os deixava parecendo espectros, quase invisíveis até para mim, fantasmagóricos, eu diria.

Pago à hora a ficada do meu carro no estacionamento e logo me retiro, me sentia exausta, aos poucos sendo cada vez mais sugada das energias verdadeiras, e considerando tudo que Fizun têm se mostrado capaz de fazer, não me surpreenderia se descobrisse que essa exaustão lentamente aparente fosse culpa dele.

Naquele momento, me sentia deslocada, havia tanto tempo assim que eu não vivia realmente a vida social? Ficar presa com Valkin ou com Kalil durante aqueles dias tenebrosos fez tanto mal assim a mim?

Me sentia anestesiada, o corpo inteiro formigava no meio daquelas pessoas, e não é como se eu não estivesse chamando atenção, uma jovem adulta de cabelo roxo chamaria atenção em qualquer lugar, incluindo em uma rave colorida.

Precisava me localizar, precisava perguntar para alguém alguma coisa, qualquer coisa.

Então, para minha felicidade, um casal de meia idade parece perceber que estou perdida e acena para mim, aceno de volta e permito que eles se aproximem de mim, apesar de um gritante desconforto implorando para que eu simplesmente fugisse dali.

– Olá jovem, é nova na cidade? – pergunta a mulher me esticando a mão, os cabelos eram louros e grisalhos, dando sinal claro de sua idade graças aos fios brancos, já os olhos eram castanhos e seu sorriso era brilhante, apesar de um incisivo na fileira de dentes da mandíbula dar destaque ao sorriso, quase me fez lembrar de Lucas, ele e sua pequena “presa” saltando no sorriso iluminado e quase sempre contagioso.

O pensamento alcança saudade, Lucas era um ponto de conforto gigante, não só para mim, mas para o grupo todo; era a pessoa que sempre mantinha a calma e tentava fazer tudo ao máximo de cabeça fria, tentando sempre escolher uma opção que agradasse a todos. Lucas saberia o que fazer aqui, saberia me orientar e me acalmar nessa situação, era um dom natural do garoto de olhos verdes menta, um dom do qual eu gostaria muito de ter já que, ele não só acalmava as pessoas próximas, mas conseguia manter um controle emocional invejável para mim. Gostaria de ter esse controle, e como gostaria.

Saindo do devaneio, forço um sorriso no rosto tentando passar alguma vergonha por “estar perdida”, qualquer coisa que não parecesse desespero puro para sair dali e não olhar para trás.

– Bem, sim, eu sou. – o pensamento alcança a hipótese de que meu rosto já estava em cartazes de “procurada” ou “desaparecida” com meu nome em letreiro caixa alta e em cor brilhante, como vermelho, e a voz trava, dizer meu nome com esse pensamento pareceu uma péssima ideia, e não era como se eu não pudesse simplesmente trocar o nome na carteira guardada na bolsa e tentar arrumar alguma coisa que pudesse me disfarçar, mesmo que minimamente; se bem que, considerando que nunca tirei uma foto pública sequer quando o cabelo ficou dessa cor, imagino que irão usar alguma foto minimamente recente nas redes sociais, fotos essas em que eu ainda tinha cabelo curto e completamente em cor negra, além da cor dos olhos que também mudou. Pensando bem, seria difícil tentarem me reconhecer desse jeito comparando às fotos, mudei muito mais do que eu mesma pensei ser possível mudar. Na verdade, estou feliz que mudei, o senso de humor melhorou, o senso de mundo amadureceu, prefiro dez vezes a Lylian de agora que a de antes, apesar de ter saudade da vida normal e de quando meus problemas eram a faculdade que eu queria entrar e como faria para ganhar uma bolsa nela. – Me chamo Lívia, Lívia Aaron. – digo apertando sua mão e logo me viro para o homem e aceito sua mão também.

– E esse cachorro é seu? – questiona de repente e paraliso, ao me virar para trás, um boder collie de tonalidade castanha com manchas no peito e no rabo brancas estava sentado esperando pacientemente por mim.

A raposa nunca passou de mera farsa em sua forma, ele não tem forma, é apenas um espectro, uma divindade, a forma que assumir é por pura indecisão ou por motivos primários, como chamar minha atenção, eles não vão me escutar, nunca irão.

– Sim. – é a única coisa que consigo responder e o cão me encara, o olhar parecia atento, quase irritado, as pupilas dentro dos olhos dourados estavam tão pequenas que quase imaginei que Kalil iria me atacar. E só sabia que era ele pelo simples fato de que sua presença em minha mente estava agitada, mais do que eu consideraria normal.

Decido que o melhor agora era desviar o olhar do cão e me voltar para o casal. Prestando atenção, o cabelo do homem também era grisalho mas possuía um tom de chocolate, o que deixava seus fios brancos mais a mostra do que os da mulher, seus olhos também eram castanhos e a barba parecia ter sido feita recentemente.

– Sou Henry e esta é minha esposa, Jenny. – diz ao soltar minha mão. Então olha para o cachorro, breves momentos de temor passam como uma sombra por seus olhos e percebo o homem, Henry — me corrijo — engolir em seco.

– Não querendo ser desrespeitoso nem nada do gênero, mas seu cão não deveria estar em uma coleira? Ele parece hostil. – diz e envio mentalmente à Kalil um xingo acompanhado de uma reclamação, se ele queria tanto assim chamar a atenção do Herdeiro de Fizun do mesmo jeito que fez comigo era melhor que ele colaborasse comigo, do contrário, estarei anunciando viagem de volta para a ilha.

Pare de reclamar de mim, Lylian, não sou eu quem está aí, não sou eu quem está procurando um Herdeiro e não fui eu quem fez esse plano. – a voz do Guardião invade minha cabeça e olho de novo para o cão e agora, logo ao lado dele, o espectro roxo da raposa estava sentada e me encarando, o cão sequer piscava.

– Não se preocupe, ele não vai atacar ninguém, é um cão guia. Ele só está um pouco irritado por causa da viagem, odeia andar de carro. Mas não é hostil, eu garanto. – minto, e já percebo que daqui para frente será apenas desse jeito se depender de Fizun, e para não ser injusta, de mim mesma também, acabei de mentir meu próprio nome e o Guardião não teve nada a ver com isso, penso, e quase me dou um tapinha no ombro por ter pensado tão empaticamente dessa maneira, normalmente eu simplesmente seria chata e jogaria a culpa na pessoa que me pôs nessa situação como justificativa dos meus atos, mas assumir que a culpa é minha em bom tom de voz é novidade para mim, e gostei dessa novidade, não senti vergonha de fazer isso e até me julgo pelo o que fiz anteriormente em outras ocasiões e com outras pessoas.

– Entendo, bem, se quiser uma pequena ajuda com isso, há uma pet shop logo na virada da esquina da segunda rua ali em baixo, pode ser que você encontre alguma orientação sobre o que fazer com seu cão. – diz e sorrio acompanhando a rua de mão dupla que o homem apontou com o queixo.

– Agradeço pela dica, bem, estou aqui para conhecer o lugar mesmo, então, obrigada. – digo me virando para Fizun e lançando-lhe um olhar de aviso, não estou com paciência para isso e tão pouco para ele e se queria minha ajuda teria que começar a colaborar comigo. O casal se despede tornando sua caminhada e me deixa para trás ao atravessar a rua e seguirem adiante.

– Posso não ter acertado o Guardião, Fizun, mas o aviso ainda é o mesmo, ou colabora comigo ou se vira sozinho, eu não vou ficar me desgastando por você. Os único que recebem uma exceção minha são os demais Herdeiros, mas vocês, Guardiões, sabem muito bem se cuidar e resolverem seus problemas sozinhos. – aviso mentalmente me agachando e utilizando um dos joelhos de apoio e a pupila do cão tilinta, não em dourado, mas em prata.

Vou me lembrar de seu aviso. – o tom do Guardião pareceu levemente sádico, ele não estava me levando a sério e, por algum motivo, isso acaba me irritando, o que era estranho, não costumo me irritar com o sarcasmo dos Guardiões, Kalil mesmo é sádico comigo o tempo todo, Moncin, Nalãn, Kuren são três vezes piores do que meu Guardião, mas Fizun parecia ter um talento particular em irritar as pessoas com os mais simples atos e às vezes nem atos, simples frases são suficientes para fazerem sangue subir para a cabeça em questão de segundos.

Me ergo diante do cão que se levanta também e, logo, me segue quase no encalço do meu passo. Se manter o mais próximo possível de mim foi um bom truque, as pessoas pareciam perder o interesse em nós assim que passávamos e as que mantinham o olhar era simplesmente por causa de um cachorro bonito me acompanhando como que se fosse muito bem treinado.

Finalmente encontro a tal pet shop e, logo, adentro o cômodo e Fizun se mantém próximo, apesar de seu olhar ficar fixo de repente nas gaiolas de passarinho acima da gente e de algumas que tinham de fato alguns passarinhos presos, parecia bem incomodado para um Guardião, eu mesma odiava essa cultura de enjaular pássaros em confinamentos tão pequenos e esdrúxulos como aqueles, mas não é como se Fizun compartilhasse dos sentimentos humanos como eu compartilho, mesmo sabendo que não sou mais humana e que já deixei de sentir muitas coisas que costumava sentir quando ainda humana.

De repente, um cachorro rosna para Fizun que, nada mais precisou do que apenas um olhar para tal o deixar em paz e não ousar erguer o olhar para o Guardião de novo.

Não sei exatamente o que procurar, mas Fizun me segue por todos os corredores apertados em que eu ia, observando as prateleiras e tudo mais, até fui bem recebida pela recepcionista do lugar mas avisei que se precisasse de algo eu a chamaria, Ellie era seu nome, não seria muito difícil de eu esquecer, uma vez que não planejava voltar aqui, mas como a cidade é pequena, imagino que todos conheçam todos e, como já havia dito, estou mais do que destacada com o cabelo dessa cor, pode não ser roxo das pontas à raiz mas o roxo em si já era vivo até demais, destacava muito fácil em ambientes como aquele que pareciam quase cinzas e sem cor.

Cansada de estar perdida naquele lugar, apenas pego um pacote de petiscos de carne e, ao pagar, subo novamente a rua e deixo Fizun no carro junto com a compra, logo adentrando o mercado. Não era muito grande, mas o suficiente para colocar prateleiras de diversos itens no local. Biscoito água e sal e pó de café, já havia encontrado um filtro e jarra dentro da casa, e não é como se eu ficasse desesperada por comida mais, sobrevivo boas semanas sem um copo de água mas não é como se eu planejasse passar tanto tempo assim naquele lugar.

Nem mesmo Fizun parecia muito inclinado para tal e assim que tivesse certeza que seu Herdeiro não estava lá, sairíamos da cidade.

– É nova por aqui? – pergunta a moça do caixa, ruiva, olhos castanhos, pele branca pincelada por sardas em toda a pele incluindo nos braços e voz fina, quase acreditei que era forçada se já não tivesse a escutado falando com os clientes enquanto ainda estava na fila.

– Sou sim, me mudei para cá tem pouco tempo. – respondo, sim, tão pouco tempo que até parece que foi ontem.

– Entendo, e pretende ficar? – pergunta passando a compra sem muito interesse em olhar para mim, parecia concentrada na tela ao lado.

– Não tenho certeza, a casa em que estou é de aluguel, mas não sei se vou ficar mesmo por aqui. – eu não pretendo ficar aqui, mas se já imaginava que seria uma mentira atrás da outra para conseguir encontrar o Herdeiro de Fizun, não imaginaria que fosse ser diferente quanto minha própria pessoa.

– Interessante, bem, espero que a cidade te receba bem, talvez você se sinta melhor assim, é estranho começar a morar sozinha em uma cidade desconhecida. – diz de repente e finalmente me olha, compreensão é o que ela emitia em seu olhar profundo em um castanho chocolate, um brilhante quase chamativo, destacando o castanho.

– Parece que não fui a única que caiu nessa cidade ao procurar por um lugar para ficar. De qualquer forma, obrigado. – digo entregando o dinheiro e a jovem sorri, recolhe o dinheiro e pego minhas coisas.

Os olhos chocolate da mulher ficam impressos em minha memória, me lembravam de Alexander, profundos e com um brilho particular deles, mas o de Alexander era caloroso, seu encarar não era ameaçador e tão pouco intimidador, companheiro e acolhedor, eu diria. Já o daquela moça parecia elétrico, vibrante.

Me aproximo do carro e jogo a compra no porta malas, logo me sento no banco do motorista e fecho a porta. A exaustão parecia lentamente maior a cada pessoa que passava por mim, o que diabos está acontecendo comigo?

Deve ser a concentração de movimentos, está te enfraquecendo. – a voz de Kalil invade minha mente e abro os olhos para encarar o teto do carro. Então me viro para os bancos de passageiro e encaro a raposa ainda em seu espectro e o cão que fingia dormir.

– Talvez. Mas não parece ser só isso. – digo, apesar de não saber exatamente o que queria dizer com aquilo.

– Eu vou caminhar um pouco, me sinto sufocada nesse carro. Vamos. – digo já sabendo que eles me seguiriam e saio do carro. Já havia descido a rua, então nada mais justo do que ir pelo caminho contrário agora.

Havia avistado uma praça arborizada no caminho para cá e preferia passar um tempo por lá do que caminhando.

Encontrando a então dita da praça, me aproximo e faço menção de adentrar além, de repente, alguém me derruba no chão e grita um “desculpa” sem parar para me ajudar e Fizun late alto o suficiente para fazer os dois garotos correrem ainda mais rápido.

– Idiotas! Moça, você está bem? – alguém grita para os garotos e se aproxima a passos rápidos de mim, logo se agachando ao meu lado e me oferendo a mão.

Quase o afasto de mim mas, ao erguer o olhar, paraliso onde estou. Os olhos eram de um azul acinzentado quase sem cor, ele como um todo parecia sem cor se combinasse os olhos sem vida junto a blusa cinza em tons de claro e escuro de degrade com o jeans da jaqueta sem manga e da calça com rasgos na altura do joelho. O cabelo castanho enegrecido e ondulado era grande ao ponto de quase alcançar os ombros e poderia facilmente o amarrar em rabo de cavalo curto se quisesse. A barba estava por fazer, estava curta e não parecia ser capaz de crescer muito mais do que aquilo.

– Você está bem? – a voz parecia estar nervosa, ao mesmo tempo que tentasse abafar aquilo, não parecia muito inclinado ao esforço, em resposta, apenas assinto e aceito a mão que logo me ajuda a levantar. Ao soltar sua mão, o olho brevemente mas o olhar cai para o cão que estava logo atrás do rapaz, o olhar estava tão fixo quanto o de uma estátua, quase vibrando.

– Sim, estou bem. Obrigado. – digo apenas, me afastando pelo menos um passo do rapaz, não é como se minha bateria social estivesse colaborando comigo para me fazer querer conversar com as pessoas, e dizer mais de três palavras, para mim, já era motivo de se comemorar.

– Eu sinto muito por eles, não estavam prestando atenção. – diz, mas não parecia muito certo sobre o assunto.

– Percebi. – digo olhando em volta e então tornando o olhar para ele. – De qualquer forma, não tenho tempo para isso. – agora sabia como era a sensação de ter que suportar gente mais nova do que eu e não conseguir.

– Bem é... Sinto muito, mais uma vez. – diz e faço menção de seguir meu rumo sem objetivo final, mas ouço os passos quase inaudíveis atrás de mim e sinto a aproximação do rapaz.

– Sou Antony, a propósito. – diz se pondo a caminhar ao meu lado, Fizun estava logo a frente caminhando a passos lentos e em zigue zague olhando para trás sempre que podia, os olhos dourados vibravam ao olhar para o rapaz mas, de certa forma, eu mesma senti uma certa eletrização na mão dele, quase como uma fraca corrente elétrica, até os olhos dele pareceram ter mudado brevemente, seria esse meu próprio sinal para sentir os Herdeiros? Será que era assim que eu teria que o encontrar?

A sensação do toque e a energia em seu olhar eram diferentes, segurei a mão de Henry e Jenny mas não houve nada de diferente, nem em seus olhares ao segurar suas mãos, humanos, sem faísca de poder ou herança dos Guardiões originais, filhos de Terra, como Kuren já havia me dito uma vez, como eu era antes de ser escolhida como Herdeira.

Mas havia uma diferença entre mim e aquele casal, Kalil me localizou por um meio próprio, e agora me perguntava se era aquela faísca elétrica fraca de poder adormecido pelo tempo e inexperiente à tentativa de uso sem supervisão. Havia uma herança de poder comigo, agora, imaginava se era algo de família, se minha família inteira era descente dos antigos Herdeiros, se outra pessoa poderia ter sido o escolhido de Kalil.

– Lívia. – respondo, apenas. Na tentativa de parar os pensamentos, pelo menos um pouco.

– Conhecendo a cidade?

– Acho que sim, pelo menos alguma coisa eu tinha que fazer. – digo distraidamente, na verdade estava pensando nas pessoas que interagi hoje além de Henry e sua esposa, o pensamento estava alcançando a operadora de caixa, o olhar dela também parecia diferente, apesar de não ter a tocado, mas o olhar como um si parecia ter uma fraca corrente de magia, presa em um interior que não conseguiria sair sem ajuda, ajuda guardiã. 

– Entendo, está aqui por algum motivo à fim? – questiona, mais para conseguir puxar assunto do que por curiosidade.

– Não exatamente. – digo, de certa forma estava bem desconfortável, não era questão da bateria social, mas mais pelo fato de que ele, Antony, estava fazendo questão até demais daquela conversa.

– Como assim?

– Estou de passagem, não pretendo ficar por muito tempo. A cidade parece tranquila, mas não tem o que eu procurava. – tento soar o mais singela possível, não estava com paciência para aquilo e tão pouco para ele. A caminhada não estava exatamente agradável, mas não estava ao ponto de me irritar também.

– Não quero ser invasivo nem nada do tipo, mas posso perguntar o que está procurando?

– Uma pessoa. – pode soar muito traíra, mas não estou com paciência para isso e não é como se eu estivesse interessada em trair meu cônjuge, além de que Alexander sabe da minha lealdade e eu conheço e reconheço a dele, não precisávamos nos preocupar.

– Ah, um parente?

– Não exatamente. – digo, Fizun se aproximava aos poucos, quase que calculando nossos passos, e já me preocupava, não era uma boa hora.

Se livre dele. – a voz invade minha mente e suspiro parando de andar e olhando o garoto, Fizun se aproxima mais e para ao meu lado.

– Escute bem, não é nada pessoal, mas prefiro andar sozinha do que com estranhos. – digo e, para minha surpresa, não há expressão em seu rosto, apenas um singelo sorriso.

– Você não é humana, Lylian. Não vai encontrar o que procura aqui. – diz de repente e começa a andar sem mim, até que, mais que de repente ainda, o cão ataca a perna de Antony e o rapaz grita ao cair no chão. Em reflexo tiro Fizun de perto dele e grito com o cão, Antony já havia parado de gritar e estava esperando eu tirar o cão de perto dele.

– Cale a boca, agora! – mando mentalmente e Fizun para, as pessoas ao redor fazem menção de se aproximar mas sou mais rápida e me aproximo de Antony.

– Você vem comigo. – digo, o sorriso volta a estar na feição de Antony mas algo estava errado, o olhar era de desespero, estava pedindo por ajuda. Observando melhor, a auréola prateada adornava fracamente as pupilas do rapaz, Fizun.

O levanto com facilidade e Antony me acompanha mancando até o carro, Fizun estava logo atrás de nós, o olhar tão vibrante quanto se estivesse em adrenalina por magia.

Kalil estava flutuando acima de nós e só o percebo ao olhar para o céu nublado, o espectro da raposa estava agitado, irritado, eu diria.

Ao trancar as portas já com Antony e Fizun dentro do automóvel, ligo o carro e dirijo de volta para a casa.

(...)
– Mas o que diabos!? – grito assim que ponho Antony no sofá e olho para Fizun. – Era para entrarmos em acordo! – grito, a magia estava pinicando a pele, fria e formigante, os olhos, já sabia que brilhavam, tanto quanto duas lamparinas púrpura, Antony agora parecia de volta a si, mas estava tremendo e muito.

Lylian.

– Distância dele! – digo, uma aura protetora me adornava e uma de irritação adornava Fizun, sentia daqui, mas passar da minha barreira ele não iria, isso eu me garantia e garantia à Antony.

Vamos resolver isso de um jeito mais razoável Fizun, o que acabou de fazer pôs Lylian à um perigo extremo! – Kalil se intromete, seu espectro estava entre mim e Fizun.

Ela poderia sair de lá facilmente, são só humanos.

– Não estou aqui para matar ninguém, Guardião do Ar! – grito, a voz sai mais gruta do que eu mesma planejava ter usado. – O que acabas de fazer fora uma criancice, imaturidade e risco de tamanho renomado! – grito, Fizun parece se calar com isso, Antony estava tremendo muito, conseguia sentir seu medo, muito medo.

Kalil lança um olhar para mim e então para Fizun, o cão retorna ao plasmático fantasmagórico e assume a forma de uma rapina mais uma vez, logo, tomando seu tamanho real e grotesco para me encarar, a fúria da aura me fuzilava disfarçada por um olhar tranquilo.

Já encontramos o que eu queria, agora saíam. – diz, a ênfase na última palavra me faz tremer, por medo, mas principalmente por preocupação ao humano atrás de mim.

Você não tem certeza Fizun, sabe bem o que vai acontecer se este humano não for verdadeiramente digno de se tornar um dos Herdeiros. Com Lylian eu tive total convicção de que ela era a certa, mas vistes o que Nalãn fez, viu o perigo que a menina Lauren correu. Vai arriscar a vida de um jovem aleatório apenas por pressa? – Kalil questiona, o espectro da raposa estava inquieto, mais do que irritado com Fizun por ter me posto em risco, sua Herdeira, está disposto a colocar Antony em um paredão.

Eu sei o que houve com Lauren, sei que se ela não dominasse os poderes Nalãn teria a eliminado da existência — segundo as palavras de Kalil — tanto que o próprio Guardião da Água apelou pela ajuda de Kalil para saber se Lauren seria realmente a certa ou se havia cometido um erro equívoco. Lauren poderia estar morta se Lucas não fosse o Herdeiro de Kuren, e teve sorte de ter tido ele com ela, do contrário, outra pessoa seria o atual Herdeiro do Guardião da Água e Lucas teria que engolir isso de boca calada.

O risco que Antony estava para correr, se dependesse de Fizun, era mortal, e não é como se Fizun parecesse querer ou estar minimamente inclinado a fingir sentimento como os demais Guardiões. Sim, eu sei que toda a “preocupação” que Kalil sente é falsa, não há sentimentos que ele sinta por mim, apenas pelos meus poderes e minha mana, mas como sou eu a portadora de ambos ele é quase obrigado a cuidar de mim, e o mesmo vale para os irmãos dele. Mas Fizun por sua vez sequer se dá o trabalho de “se preocupar” pelo visto.

É só um humano, tem outros bilhões dele por aí. E não estou com paciência para ficar procurando, há uma mana de magia nele, forte o suficiente para me inclinar à aproximação. E se não for o certo tento com a mulher que você estava conversando dentro do edifício. – diz me olhando, mas algumas vezes o olhar caía para o rapaz atrás de mim. "Mulher dentro do edifício"? Só se ele estiver se referindo à operadora de caixa.

– Pense bem no que está fazendo, Fizun. – aviso, a ameaça estava mais do que explícita no meu olhar, estava também no de Kalil. Seguro o pulso de Antony e refaço o escudo em volta de nós dois, me aproximando da saída da casa, Fizun me olhava curioso, acompanhando eu e Antony apenas com o olhar.

Desmancho a barreira que protegia a mim e ao garoto do grande falcão, este que, por sua vez, se aproxima e agora o fantasma da rapina se desmancha para uma forma humanoide, alta, magra e sem rosto, o que pareciam fios de cabelo ondulavam na cabeça do humanoide como algas sendo puxadas para cima por sua leveza em baixo da água, mas suas pontas não existiam, sumiam após certa altura alcançada.

Não é sábio fazer isto, Herdeira da Escuridão. – diz, o plasma fantasmagórico agora brilhando aos poucos em neon, como se pulsos de luz desenhassem o ar vácuo da forma humanoide a minha frente.

– Antony, corre. – aviso e saio correndo, o rapaz salta porta afora e corre atrás de mim, atravessando o deque, nós dois começamos a correr em direção a floresta, não podia simplesmente sair voando, não ia competir com o Guardião do Ar uma corrida em seu domínio! Seria estupidez, além de que Fizun nos alcançaria rindo!

LYLIAN! – a voz gruta do Guardião ecoa em minha mente parece também vir de todos os lados, do ar, da terra, das árvores e das sombras, sua aura estava em todo lugar!

– Que merda está acontecendo!? – ele grita tentando me acompanhar e olho para trás rapidamente para o olhar mas ao ver além dele, uma sombra parecia engolir as árvores atrás de Antony e, ao olhar para além da copa das árvores, a visão me traz terror. O falcão estava anormalmente maior do que de costume, a envergadura das asas gigantes engoliam a floresta causando uma sombra gigante, o corpo do falcão sendo ofuscado pela luz cinza do dia nublado só traziam mais terror à cena.

Desacelero o passo para Antony me alcançar e, em um ato mais rápido do que o humano poderia acompanhar, o jogo em cima das minhas costas e começo a apressar o passo, o peso dele deveria ser gritante para eu ter que sair correndo depois, mas nada mais se parecia do que com o peso de um saco de arroz. A sombra se aproximava cada vez mais, pronta para me engolir mas, de verdade, o que cacetes eu estou fazendo!? Sou literalmente a Herdeira da Escuridão!

Paro de correr e tiro Antony das minhas costas, logo, ao pôr na minha frente, seguro seus pulsos e o aproximo mais de mim, Fizun se aproximava com velocidade, Antony me olhava com horror, estava ofegando ainda por cima, mas acho que o problema era mais eu agora do que o falcão gigante, os olhos vibravam em púrpura e adrenalina, brilhantes como lanternas, permito minhas asas virem, se abrirem e se esticarem, logo, com a aproximação do falcão cubro a mim e a Antony com as asas e permito a escuridão me engolir ao grito do Guardião tremer o ar e pesa-lo com sua mana irada.

§Guardiões da Terra 2: Treinando o Herdeiro do Ar§ [SENDO REESCRITO]Onde histórias criam vida. Descubra agora