O sol da manhã se transformou em sol da tarde e mesmo assim Shoto não levantou do chão áspero de tatame. Por suas contas, havia perdido um dia de aula já. Nem mesmo quando o fim de tarde chegou, o rapaz sentiu alguma fome ou vontade de se levantar dali. Sabia que uma hora precisaria sair do quarto, mas não sabia o que fazer em relação a Izuku e a simples lembrança do dia anterior lhe enchia os olhos de água.
À noite, começou a ouvir a barriga roncar. Era engraçado que, apesar de tudo, seu corpo ainda pedia por necessidades básicas para continuar funcionando. Por sorte, tinha algo de salgadinho na gaveta e o empurrou para dentro roboticamente, sentado na cadeira perto da varanda, de onde ficou observando a sequência de postes relativamente baixos, iluminando o jardim. Estava com raiva de si mesmo e também um pouco magoado, quando reviva a discussão que havia tido com o namorado. As coisas do passado de Izuku e como ele lidava, aquilo não era da conta de mais ninguém e se ele não quisesse lhe contar, Shoto não tinha o menor direito de pedir. Tinha dito isso a si próprio tantas vezes…
Não parou de comer, mesmo quando as lágrimas lhe escorreram pelo rosto, o fazendo fungar enquanto mastigava. O semblante todo machucado que o rapaz lhe mostrou o instigava de forma que não conseguia esquecê-lo, e ter sido a pessoa que o provocou fazia seu coração doer como se um espinho o estivesse atravessando. Limpou o nariz com as costas do braço. Mesmo com tudo isso, ainda havia uma profunda sensação de frustração em suas costas, como se… como se não fosse suficiente para que Izuku confiasse nele, ou algo do tipo. Como se lhe faltasse algo, mas ele não sabia o que. Bom, não seria se tornando mais uma pessoa a machucá-lo que mudaria isso.
Assim que o saco do salgadinho picante se esvaziou em suas mãos, percebeu que ainda estava com fome. Talvez devesse rumar ao refeitório agora mesmo para tentar pegar o resto do jantar, pensou, considerando que era provável que mais ninguém estivesse lá a essa hora. Levantou-se, jogou a embalagem na lixeira e olhou para a porta. Na mesma hora, a figura de Izuku e sua silhueta irritada deixando o local às pressas apareceu em sua mente outra vez, o que fez Shoto se jogar na cadeira, derrotado. Por que raios o tinha mandado embora daquele jeito?
Suspirou. Estava com medo de encará-lo e do que poderia vir disso e agora não sabia o que fazer. Como alguém tão mentalmente bagunçado assim poderia pensar em ser um herói? Quanto mais pensava sobre isso, mais parecido com o próprio pai ele próprio lhe soava. E isso o assustava mais do que nunca agora. Não estava com cabeça para as aulas de amanhã e muito menos para qualquer treino e considerou se deveria faltar os últimos dois dias da semana e fingir alguma doença depois.
Arrumou a cama essa noite, mesmo tendo certeza de que não dormiria outra vez, em movimentos tão automatizados que só notou que tinha terminado de estender o edredom quando suas mãos estavam vazias. Uma batida na porta chamou sua atenção. É claro que alguém viria, as pessoas provavelmente estavam preocupadas com ele. Ainda que não tivesse ouvido a batida tradicional de Izuku, mesmo assim teve um pouco de esperança, que logo morreu quando a figura de Yaoyorozu lhe sorria preocupada, com os cabelos para baixo e uma sacola na mão.
— E-eu vim te trazer c-comida… — Ela mostrou o conteúdo da bolsa, o qual parecia ser uma marmita vermelha de metal. Shoto a deixou passar e acendeu a luz. Fechou os olhos por um segundo até eles se acostumarem à claridade e, quando os abriu novamente, a menina já estava arrumando a comida em cima da mesa de estudos. Assim que terminou, ela o encarou. — Todo mundo está preocupado com você…
— Eu estou bem. — Shoto respondeu, sem jeito. — Não precisava de tudo isso…
— Você está horrível. — Ela disse apressada, então agitou as mãos no ar. — D-desculpa, não foi isso que eu quis dizer, eu…
— Tudo bem…
Shoto abaixou os olhos e mordeu os lábios. Sabia o que ela queria dizer. Provavelmente, depois de passar o dia todo deitado chorando, ele não estava com a melhor das aparências. E talvez, tê-la deixado entrar agora não houvesse sido uma decisão muito boa, mas algo lhe dizia que a garota ainda tinha alguma coisa para falar, considerando a maneira que sua expressão parecia agitada. Contudo, ficaram em silêncio por alguns segundos, antes que Yaoyorozu lhe sinalizasse para se alimentar primeiro. Não discutiu. Pegou os pauzinhos que ela tinha arrumado bem tradicionalmente e abriu a vasilha, revelando uma porção grande de soba frio que certamente tinha sido feito pela própria. Terminou de comer e limpou o rosto enquanto ela o esperava sentada de joelhos no futon, sentindo-se grato pela amizade que tinham formado durante os últimos anos, então se virou, ainda sobre a cadeira, para ouví-la.
— Kyoka me contou sobre você e Izuku… — Shoto se levantou em um salto, sentindo o coração acelerar devido à culpa. Rangeu os dentes, pensando em como o garoto estava certo ao lhe dar bronca em primeiro lugar, como poderia ter esquecido da besteira que tinha feito? No entanto, Yaoyorozu fez um gesto para que ele se acalmasse, esticando o corpo para ficar mais alta, sobre os joelhos. — E-ela não vai falar com mais ninguém, eu prometo. F-foi só comigo… e-ela ficou meio animada…
— Animada? — Shoto se forçou a sentar novamente para falar com a amiga, mesmo que estivesse desconfiado do rumo daquela conversa.
— Por você ter tido coragem de dizer aquilo na frente das pessoas… — Yaoyorozu mexeu no cabelo jogado todo para frente sobre o ombro, como se fosse fazer uma trança. Seu rosto estava bem vermelho. — Sabe, eu e Kyoka estamos saindo…
Shoto franziu o cenho por um momento e depois levantou as sobrancelhas ao entender o que ela queria dizer. De repente estava sentindo o corpo um pouco mais leve, da mesma forma que tinha sido quando saíram com Aoyama na primeira vez.
— Por favor não conte para ninguém! — ela pediu em um tom fino. — Yuga-kun descobriu sozinho… mas você é a primeira pessoa para quem eu me assumo… nem meus pais sabem ainda.
— Certo. — Shoto acenou com a cabeça. — Nós também não assumimos ainda… Ontem foi um erro meu…
— Entendi. Yuga-kun sabe de vocês também, não? — assim que Shoto concordou, ela prosseguiu. — Ele é bem esperto para essas coisas e bem confiável também. Você soube do namorado dele?
— Eu estava lá. — Shoto olhou para os próprios joelhos ao pensar no término do namoro do colega. — Mas foi Izuku que o consolou o tempo todo…
— Ah sim, é verdade. — Ela coçou a cabeça, parecendo lembrar de algo. — Deku-kun também é um garoto muito bonzinho... Sabe, eu acho que a gente precisa se proteger e ajudar entre a gente, pelo menos é o que a internet diz… Q-quer d-dizer, no sentido de poder ser um apoio emocional e desabafar, sabe como é, já que somos amigos e ambos gostamos de alguém do mesmo gênero… mas se não quiser me contar o que aconteceu, tudo bem.
— Eu e ele brigamos ontem. — Shoto se surpreendeu com o quão rápidas aquelas palavras lhe saíram. Realmente era bom ter com quem contar assim, por isso continuou. — Acho que vamos terminar. É minha culpa.
— Ah! — Ela exclamou em um tom triste, parecendo não saber o que completar. — Por isso que vocês dois faltaram hoje…
— Nós dois?
— Sim, ele também não apareceu… acho que Yuga-kun foi agora pouco ver como está, segundo a Kyoka, mas eu não sei te dizer como foi.
— Entendi. Obrigado por me contar.
Shoto fechou as mãos em cima das pernas e suspirou, sem saber ao certo o que fazer com aquela informação, então a menina levantou ligeira e o abraçou sem jeito. Era um toque macio e reconfortante. Retribuiu o gesto, também sem jeito, mas sentindo-se um pouco melhor, mesmo estando surpreso e sem graça o suficiente para não conseguir chorar na frente dela.
Um tempo passou com eles assim, e então Yaoyorozu anunciou que já estava de partida. Despediram-se, desta forma, e o rapaz a observou até virar o corredor para daí fechar a porta, novamente sozinho. Estava mais animado, mas a dor no peito ainda era presente. Para Izuku ter faltado a escola e os treinos daquele jeito, significava que ainda estava triste por causa dele. Puxou o ar devagar e apagou a luz antes de se deitar, revivendo sem querer as cenas de antes, agora misturadas com a conversa de alguns minutos atrás.
Foi uma noite longa, na qual as poucas horas de sono lhe foram repletas de pesadelos. Até mesmo com as brigas de família, com headhunter e com as provas finais o seu cérebro resolveu remexer, além do óbvio impasse com o namoro. No fim das contas, acordou mais cansado do que adormeceu, o que endossava sua completa indisposição para o dia letivo.
Resolveu, por conseguinte, tentar estudar um pouco por conta própria no dormitório, para distrair os pensamentos. Não passou nem dez minutos olhando para a matéria de história, quando ouviu uma batida na porta, tímida como a do dia anterior, e imaginou que seria Yaoyorozu, voltando para pegar a marmita e os hashis esquecidos. Atendeu-a sem ligar muito, falando alguma coisa sobre soba, quando sua voz falhou: no lugar da menina, um par de olhos verdes o miravam inchados. Izuku.
Shoto mordeu os lábios, sem saber o que dizer, sem coragem de encarar de volta. Estava com medo do que escutaria a seguir.
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A história de nós dois
Fiksi PenggemarNo último ano da Academia de Herois, Todoroki Shoto e Midoriya Izuku têm que lidar com a pressão de serem grandes heróis e competirem pelo primeiro lugar, enquanto desenvolvem sentimentos um pelo outro.