1 A arte do bom Stalker

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Matheus

Os dias seguiram na mesma toada, a diferença era que minha mãe melhorava a cada dia, e mesmo antes de seus exames finais da alta, ela já se sentia bem e já até dava caminhadas até a venda ou a padaria para bater papo com as vizinhas e conhecidos que estavam preocupados com ela, naqueles quatro meses em que ela ficou internada, me surpreendi com o quanto ela era querida por eles. Claro que adorei, minha mãe era meu melhor exemplo de mulher, e nem sempre ela foi respeitada daquela forma. Passamos por muita coisa juntos, e toda a minha infância, só fez com que eu tivesse cada vez mais orgulho dela. Então, ver ela melhorando finalmente, me dava mais ânimo para seguir com os meus próprios planos.

Entre as aulas e a monitoria, eu ainda conseguia algum tempo para ficar com alguma garota, mas, só havia uma que realmente me interessava...

Bia, ela pegava o ônibus todos os dias muito antes de qualquer outro aluno, cheguei a cogitar que ela também fosse monitora, mas não era, não ainda pelo menos, porque a última garota com quem fiquei, insistiu tanto para almoçarmos juntos que acabei aceitando, e no shopping, ela se revelou a maior tagarela que eu já havia visto na face da terra. Aparentemente, Bia, a caloura com visual Disney anos 2000 era uma irritante sabe tudo. Aquele foi o único dos quinhentos assuntos que ela começou que realmente me interessou. Segundo ela, Bia e sua amiga chegavam ao campus quarenta minutos antes, aparentemente por motivo nenhum, ela também tinha, e isso são palavras dela: "o costume de corrigir os professores e também alunos para aparecer".

Tirando as ofensas gratuitas da provavelmente despeitada na minha frente, a minha visão de Bia, era completamente oposta. E gostei ainda mais de saber que ela era inteligente, eu poderia presumir isso, mas a observando apenas no ônibus seria difícil deduzir com precisão.

Apesar do meu interesse, eu não me aproximei, não que eu ficasse tímido, ou qualquer coisa assim, mas porque, Bia, a estudante exemplar de direito tinha uma aliança do tamanho de um holofote no dedo da mão direita.

Isso poderia ter me servido de lição para que eu parasse de olhar para ela todos os dias, tentando adivinhar o que se passava pela cabeça dela enquanto ela se abraçava no ferro ou se encostava em algum lugar para ter mais um tipo de segurança enquanto se segurava no balanço do ônibus tentando ler no celular, ou algum livro, sempre coberto com uma capa de tecido de algum personagem da Disney.

Ela fazia o percurso todo de cabeça baixa, com os fones no ouvido entre os cabelos longos, castanhos e levemente ondulados, às vezes estavam soltos, às vezes enrolados de um jeito bagunçado como se ela nem tivesse tido tempo de penteá-los.

As camisetas dela sempre tinham alguma coisa relacionada a livros, romances, em sua maioria, e também, pelo menos uma vez na semana, ela passou a exibir o símbolo da justiça em suas roupas, o que colaborou com a versão da garota, de que Bia era mesmo apaixonada pela faculdade.

Demorou um tempo para que eu notasse o quanto eu a olhava, o quanto cada nova informação sobre ela me fazia criar mais expectativas. Quando dei por mim, eu já frustrava qualquer tentativa, de qualquer garota de ficar comigo. Meus dias se resumiam a estudar, cuidar da minha mãe e observar Bia. Como se ela fosse um pássaro raro no meio daquele monte de pardais.

Meses se passaram, férias chegaram e se foram e eu via Bia ficar cada vez mais... Triste.

Em alguns dias eu conseguia ver seus olhos segurando lágrimas que ela não queria derramar ali em público. Mais de uma dezena de vezes pensei em me aproximar, pensei em falar com ela, um assunto a toa só para ouvir a voz dela. Mas eu não tinha coragem. Não podia me meter na vida dela, para todos os efeitos eu não era ninguém, mesmo que ela fosse já de alguma forma, importante para mim.

As férias do meio do ano me trouxeram uma dura notícia. Eu estava me preparando para voltar às aulas em dois dias. Quando minha mãe teve uma crise, por causa de seu histórico, resolvi levá-la ao hospital que ficava perto de casa. Havíamos nos mudado para aquele bairro exatamente por ficar perto.
Naquele dia, depois de um exame, constataram... O câncer havia voltado, mais uma vez, estava comprometendo os pulmões pâncreas e um dos rins. As metástases eram da doença anterior.

O primeiro tumor surgiu na mama, eu tinha doze anos, e foram meses de luta até a cirurgia e as quimioterapias, quando eu tinha quinze, ela descobriu outro nódulo, dessa vez na axila, depois, aos dezoito o primeiro do fígado e agora...

Aquela foi a pior vez, porquê, nessa eu entendi toda aquela linguagem médica usada para tentar confundir o paciente e talvez dizer a verdade sem doer tanto. Ela estava morrendo, o câncer já estava espalhado, e provavelmente os tratamentos não fariam mais efeito.

Voltei para casa, na última noite de férias, e a coloquei na cama, não tinha forças para dizer muito, só que ela precisava descansar. Olhei a lista imensa de medicamentos e reconheci todos. Eu nunca pensei que a frase "a ignorância é uma bênção" fosse válida, mas naquele momento eu entendi exatamente o que queria dizer.

Me sentei no chão ao lado de sua cama, e segurei sua mão.
Engoli em seco, baixando os olhos, porque as vozes na minha cabeça diziam que eu a estava perdendo... E dessa vez, eu sabia todos os termos e processos pelos quais ela passaria.

⸻ Mãe? ⸻ chamei e a olhei, seus olhos pareciam adivinhar meus pensamentos. ⸻ Me conta outra vez, como você me teve? ⸻ pedi.

Ela sorriu e me deu espaço para que eu colocasse a cabeça em seu colo.

⸻ Bom... Eu era uma velha viúva e sozinha, achei que a minha vida já estava completa, e que já havia vivido tudo o que tinha direito. Mas aí, uma pessoa muito querida, disse que a filha teria um anjo, mas que não conseguiria cuidar dele. Então, eu disse que tudo o que eu precisava na minha vida, era de um anjinho. Quando o peguei nos braços, tão pequeno e frágil eu nunca pensei que pudesse haver tanto amor na vida. Quando vi seu rostinho, eu entendi o porquê eu estava viva e que ainda teria muito, muito para viver. Dei o nome de Matheus para esse anjinho, porque esse nome significa "dom de Deus" e é isso que você significa para mim, amor, o dom que Deus me deu de amar, e de ser mãe.

Cada vez que ouvia aquela história eu sentia as lágrimas em meu rosto. Não só por minha mãe ter me adotado, ter me escolhido, mas pelo dom das palavras que ela tinha.

Segurei sua mão entre as minhas. ⸻ Mãe... Posso fazer um trato com a senhora?

Ela afagou minha cabeça de leve.
⸻ Um trato? Como assim, bebê?

Fechei os olhos com pesar, o jeito como ela me chamava de bebê, como qualquer outro cara da minha idade se irritaria com aquilo. E como a cada vez que eu ouvia, fazia meu coração disparar, por saber exatamente o significado daquilo para ela.

⸻ O trato de que a senhora tem que estar aqui para ver, tem que ir na minha formatura, tem que estar comigo, ou eu não vou ter forças para isso. Eu não posso ficar sozinho, mãe. Não quero ficar...

Pela primeira vez, vi lágrimas em seus olhos, ela me abraçou mais apertado do que jamais senti, e sussurrou no meu ouvido.

⸻ Eu te prometo, meu bebê, eu juro que vou tentar ser forte para ver você realizar seus sonhos, eu quero estar lá na primeira fila para te ver formado.

⸻ E eu quero que esteja lá para eu mostrar para todos a mãe linda que eu tenho.

⸻ Eu te amo, meu bebê.

⸻ Eu também te amo, mãe.

Naquela semana, tudo mudou... Como se o meu mundo girasse 180° Algo bom e algo ruim me acertaram em cheio.

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