Memórias de...

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AYLA

Ela sintonizou numa estação de música tradicional turca, enquanto ele conduzia o carro rumo à casa de Nene. Colocou o rosto na janela, absorvendo a visão, os cheiros, os sons de Istambul. O ar fresco invadiu-lhe as narinas. Uma sensação de paz aqueceu-lhe o coração. 

Havia algo de mágico na sua cidade: a orla magnífica, os bosques, os bairros antigos contrastando com construções modernas, a diversidade de culturas. Insinuando uma dança com as mãos e os ombros, voltou o olhar para Kemal. Esboçou um sorriso tímido ao homem encantador que ele tinha se tornado. 

As chamadas de vídeo ocasionais feitas po ele em companhia de sua avó, mostravam o quanto Kemal continuava lindo, mas nada a preparara para o impacto daquela presença física impressionante. 

Era uma beleza máscula. Uma aura de força e uma tensão sensual emanavam por cada poro daquele corpo. A barba de pelos avermelhados, era instigante. Os dedos de suas mãos queriam tocá-la, sentir a textura. Sentiu o arrepio discreto percorrer sua espinha. 

A última ocasião em que ambos ficaram tão próximos, ela sentira bem mais que isso. Será que ele se lembrava?

KEMAL

O percurso nunca lhe parecera tão longo. 'É comum ter tanto calor nessa época do ano em Istambul?'- pensou.

Afastando a gola da camisa, buscava refrescar a pele. Sua memória pregava-lhe peças, enquanto seus olhos acompanhavam, enfeitiçados, a dança de Ayla. Por pouco, não mudou a estação para um programa sensacionalista, com um noticiário horrendo, que tirasse sua atenção do quanto ela estava linda e bem ali, ao alcance das mãos. 

Percebeu o instante em que ela recostou-se no banco, cerrando os olhos. Sorriu de prazer com a visão do vulto feminino na penumbra. A mente, traiçoeira, levou-o de novo para a noite em Milão. 

A noite que dera a ele a certeza do brilhantismo de Ayla. E que também revelara que ele estaria há anos luz de ter um lugar na vida dela.


*******************

O convite fora a desculpa perfeita para ir ao encontro de Ayla. Ele sentia saudades. Muitas. Após a chegada, tivera apenas tempo para um banho rápido e deixar a pouca bagagem no apartamento do maestro, mas agora, vendo a magnitude do que se apresentava, agradecia  por ter cometido aquela pequena loucura.

 Apesar da viagem corrida e da estadia rápida, jamais desperdiçaria a chance de vê-la novamente. Só não imaginara que seria algo tão grandioso. O teatro estava lotado. Esperava que tivesse ao menos a chance de cumprimentá-la depois da apresentação. Quando as luzes se apagaram, foi envolvido pela atmosfera da orquestra. A cada nota, seu peito se enchia de orgulho pela riqueza musical de seu país. 

A entrada de Ayla o deixou sem fôlego. Uma miragem em tons de areia, o cabelo escuro e ondulado contrastando com a pele alva, revelada no decote fundo. A visão dos seios pequenos e da cintura fina marcados pelo corpete encrustado de pequenos cristais, combinada com o vislumbre dos quadris levemente arredondados, insinuando-se debaixo de camadas delicadas de organza e renda, provocou-lhe uma fisgada incômoda no baixo ventre. Ele nunca se esqueceria daquele momento, ainda que vivesse cem anos. 

 A primeira parte do concerto deu a entender o quanto Ayla crescera musicalmente. Ele se orgulhava mais e mais, a cada nota tocada com precisão e maestria. No intervalo, uma assistente da produção o conduziu ao camarim. O maestro Nihan o esperava. Um abraço caloroso marcou o reencontro dos dois. Kemal, assim como outros, tinha muita gratidão e respeito pelo velho senhor, conhecido por seu empenho em favorecer os estudos de jovens da comunidade. 

- 'É assim que se muda a história de um povo.'- ele sempre dizia. O maestro adiantou-se em explicar a ausência de Ayla... ela estava  preparando-se para a segunda parte do evento. Entre uma lembrança e outra, combinaram a surpresa para o fim de noite.

- É uma pena que você não tenha conseguido trazer Nene...aquela velha teimosa! Mas a nossa garota vai ficar muito feliz em te ver, meu rapaz.

- Eu estou impressionado, Maestro...

O idoso sorriu, percebendo-lhe o nervosismo.

- Ela é a mesma garota de Sulukule, Kemal. Não se engane por todo esse brilho e pelas luzes do palco.

 Alguns aperitivos depois, a mesma assistente o levou de volta. Ainda na penumbra,ouviu o som dos violinos preencherem o teatro. O vulto feminino ocupou o centro do palco, entregue à uma dança sensual e rítmica. O plano era surpreendê-la no final, mas, a surpresa era toda sua. Qualquer dúvida que pudesse ter sobre a forma como se sentiria ao revê-la, caiu por terra diante da visão deliciosa do bailado daquele corpo sinuoso.

 Ficou agradecido pelas luzes apagadas na plateia. Ajeitou-se como pôde na cadeira pequena demais para o seu tamanho, incapaz de desviar o olhar. Teria sido constrangedor se as pessoas vissem o quanto ela mexia com sua imaginação. Fora mesmo uma loucura viajar naquele período, com os estudos e provas na faculdade, o trabalho na academia, mas, valera a pena.

Aquele instante era um presente. Ayla era uma combinação explosiva de feminilidade, talento e beleza. Era um privilégio ver como ela tinha crescido artisticamente e como se tornara mulher, no sentido pleno da palavra.

 Ele estava em chamas. Mal podia esperar o momento de abraçá-la. E, enfeitiçado pelo que via, decidiu: antes que a noite terminasse, faria com que ela soubesse que sempre lhe tirara o fôlego, de muitas formas...

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