Sempre a música!

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AYLA

No meio da manhã seguinte, após voltarem da cachoeira, o quarto foi invadido por uma pequena plateia. O grupo, com cerca de seis garotas, demonstrava total espanto. Assim que finalizara a primeira música para sua anfitriã, a garota saíra em disparada e voltara em companhia das demais. 

 Tarik viera, mas ao deparar-se com a cena, se fora rapidamente.  O alívio por se livrar da presença indesejada, deu-lhe mais motivação para interagir com as meninas.

O instrumento não era dos melhores mas, o simples fato de poder tocar, já lhe fazia um bem enorme. Graças aos céus seu povo tinha na alma o apego à música. Era comum que nas comunidades Rom tivesse alguém que tocasse violino, acordeon e outros instrumentos. A vivacidade da música cigana nascera assim: passando de pai pra filho ou de amigo para amigo, nas tendas e casas simples, sem apegos aos métodos clássicos- apenas se permitiam experimentar a musicalidade e desenvolviam as habilidades naturalmente.

Pousou o arco enquanto era aplaudida efusivamente. Aproximou-se de sua anfitriã e entregou o violino, sinalizando que tocasse. As colegas riam e zombavam enquanto ela extraia notas tímidas. Encorajou-a e a moça prosseguiu, apesar da insegurança. Naquele instante, a tia de Tarik entrou. As meninas ficaram sérias diante do questionamento feito por ela. Sua 'aluna' respondeu algo. A mulher olhou admirada para Ayla, apontando o violino. Entendeu que ela queria ouvi-la. 

Pegando-o de volta, começou a tocar Czardas, uma das suas canções favoritas. As notas perfeitas encheram o ambiente. A mulher abaixou a cabeça e fechou os olhos, apreciando o som rascante, mas belíssimo. Quando terminou, ela continuou um tempo assim. As meninas, estáticas, observavam a cena. Ayla percebeu a emoção profunda que sua apresentação despertara.

Aproximou-se, tocando o ombro da mulher. Ela abriu os olhos marejados e deu um sorriso triste. Olhando para a filha, disse algo. As meninas saíram, deixando-as sozinhas. A mulher bateu no colchão, pedindo que Ayla sentasse ao seu lado. Ela obedeceu e aguardou em silêncio que a outra se refizesse. Alguns segundos se passaram antes que a ouvisse raspar a garganta, iniciando a falar num turco arrastado.

- Meu Baba...amava muito essa música...- a melodia despertara na mulher as lembranças do pai. Quem sabe se ainda estaria vivo? Confirmou que tinha entendido, balançando a cabeça.

- Eu falar mal turco, filha - pausou como que organizando as palavras - muitos anos atrás, conhecer sua anne. Sâmia...linda, linda!

O coração de Ayla disparou. 

- A senhora conheceu minha mãe?

A mulher sacudiu a cabeça.

- Eu saber tudo. O acordo de casamento de Hakan e seu baba, sua anne não gostava. Queria para você ...– e mostrou o violino. Ayla abaixou a cabeça e chorou. Não só pelo que a mulher dizia, mas porque, finalmente, quebrara o gelo. 

O poder da música, mais uma vez, impactava sua vida. Esforçando-se para falar com calma, iniciou um diálogo. 

- A senhora...

A mulher a interrompeu. 

- Rayna. Meu nome, Rayna.

Decidiu arriscar tudo. Se houvesse a mínima chance de tocar o coração da mulher quanto ao que Tarik lhe fizera, a hora era essa.

 – Rayna, eu preciso da sua ajuda. Eu não posso casar com Tarik. Eu - apontou o dedo anelar- já tenho compromisso. Eu amo outro homem. Muito.

Ayla prosseguiu, encorajada pelo espanto nos olhos claros.

- Tarik me trouxe contra minha vontade. Meu noivo, Kemal... é policial. Ele deve estar me procurando.

Rayna levantou-se e foi até a janela. O olhar perdido vagou pela paisagem por um tempo, antes que voltasse a falar.

- Eu casar forçada, sabe? – Ayla ouvia com o coração disparado enquanto a mulher partilhava a vivência – minha Galena...a garota ...o pai quer forçar casamento dela. Nossa vida, assim.

Ayla se condoía pela história vivida por aquelas mulheres, mas não perderia a chance de pedir ajuda.

- Eu sinto muito por vocês - colocou a mão sobre o próprio coração- sinto sinceramente, compreende?

Respirou fundo, buscando coragem. Sabia que o que faria agora poderia terminar muito mal caso a mulher não cooperasse, mas estava decidida. Guiou a mão da outra pousando-a sobre o próprio ventre.

- Rayna...eu estou grávida. - apertou a mão para que a mulher sentisse sua barriga- Tem um bebê aqui, entende? Do meu noivo, Kemal. Se Tarik descobrir...

A mulher recuou assustada, levando as mãos à cabeça. Em seguida, abriu a porta do quarto certificando-se que ninguém as ouvira e saiu. A reação da outra despertou-lhe um medo profundo. Sentiu-se como se o chão se abrisse sob seus pés. Estava perdida!

Sentada na cama, cedeu ao cansaço e ao estresse dos últimos dias: entregou-se a um pranto sofrido. Sentia o peito oprimido pelo arrependimento de ter revelado sua gravidez e também pela sensação de desespero diante das incertezas. 

Não tinha como prever o que Rayna faria diante de sua revelação.

KEMAL

A paisagem seria de tirar o fôlego em outra situação. As duas barracas pequenas foram armadas numa área coberta pela copa das árvores fora do campo de visão, mas se alguém passasse, eles veriam, com certeza. Terminou a refeição simples preparada pelo guia. 

Aceitou o copo de çay que o rapaz oferecia. Ele o acompanhara pelas trilhas, descrevendo apaixonadamente cada canto pitoresco. Ficara totalmente empolgado ao ouvi-lo dizer que  sua expedição solitária teria o intuito de preparar uma viagem surpresa de lua-de-mel para a noiva. As pessoas se rendiam mesmo sob qualquer pretexto romântico. Justificara o interesse pela área próxima ao acampamento Rom com a desculpa de querer conhecer a famosa cachoeira da região que, segundo a lenda divulgada no blog, teria águas 'milagrosas' .

Disparou a máquina fotográfica que alugara como se testasse o equipamento.

- É boa. - comentou e o sorriso do rapaz se abriu.

- Sim, abi! Nós sempre oferecemos o melhor aos nossos clientes.  

Mirou em direção ao alto da montanha e disparou novamente. Mal conseguia disfarçar o interesse pela estradinha: aquele era o caminho que o levaria até Ayla.

- Vamos explorar o bosque hoje abi e amanhã, cedinho, eu o levo à cachoeira. O lugar é muito visitado na alta estação, mas, pra sua sorte, nessa época do ano só os Rom costumam frequentá-lo. Vamos num horário em que eles não estejam, óbvio. Não queremos ter problemas com aquela gente doida, não é?

Deu de ombros diante do comentário preconceituoso. Estava mais do que habituado a ouvir esse tipo de conversa sobre seu povo. 

- Acho melhor circular um pouco livre por aí, fazer algumas fotos do bosque, descobrir lugares românticos...quando vier com minha noiva, quero aproveitar ao máximo, sabe? Você me indica a direção da cachoeira  e eu mesmo chego lá. 

O rapaz concordou, sem questionar. 

Terminou de tomar o Çay, pensando no quanto estava perto de Ayla.  E ele, que não costumava ser de grandes arroubos espirituais, fez uma prece silente: 

' Que todos os anjos do céu protejam o meu amor. Assim seja.'

O anjo protetor Onde histórias criam vida. Descubra agora