Verdades ocultas

229 35 13
                                        

KEMAL

O garoto que abriu o portão apontou o fundo do galpão, na direção do som irritante da lixadeira.

- Você é Ozan, não é?- o menino sacudiu a cabeça, confirmando. Aquele era o mesmo que tentara ocultar a descoberta do anel no casario - Sua mãe está na casa de Nene. É melhor que você vá ficar com ela.

Kemal pediu a Bedir para acompanhá-lo até a saída. O homem era um canalha. Agredia Narin e ainda tinha coragem de manter o filho dela por perto, como se não tivesse feito nada.

De costas, rodeado por uma nuvem de resíduos e usando óculos e fones de proteção, Tarik não percebera a chegada dele e de Bedir.

Um cheiro ativo de verniz impregnava o ambiente. O lugar era mal iluminado, mas seus olhos treinados perceberam os objetos espalhados: espátulas, alicates, tesouras. O tampo entreaberto de um balde deixava ver um preparo viscoso, um tipo de massa de jornal e cola. Mais à frente, rolos de espumas finas e tecidos. Não pôde deixar de notar a riqueza de detalhes das peças, algumas realistas, outras caricatas, bem teatrais.

- Kemal, acho bom você ver isso – Bedir  apontava a caixa grande num canto. Pelo tampo transparente, avistou as peças que chamaram a atenção do parceiro: um casal de marionetes. O rosto da personagem de cabelos ondulados e escuros, vestida de vermelho, pareceu-lhe familiar. Uma das mãos segurava uma miniatura de violino. O outro boneco, com trajes típicos, lembrava muito o próprio criador. Engoliu seco.

- Esse cara é bem sinistro.- Bedir externou seu pensamento.

Andaram pelo ambiente. Pouco mais à frente, o pôster antigo anunciando um show mambembe, trouxe-lhe certo conforto. Na foto estampada, o próprio Tarik enlaçava uma garota com as mesmas características da boneca. A mulher tinha, sim, alguma semelhança com Ayla. Não pôde negar o alívio ao ver a imagem. Lembrou-se que além de artesão, Tarik era um exímio titeriteiro. Provavelmente participara do show. Isso explicava os bonecos.

Melhor que se fizessem notar. Bedir apontou a entrada de acesso ao anexo lateral. Ele sinalizou positivamente e o colega chutou fortemente a porta que se abriu com a pancada. O rumor da máquina cessou e o artesão depositou as peças que lixava sobre a bancada. Com a expressão fechada, apenas observou, enquanto se aproximaram.

- Eu pensei que bons modos era exigência básica para a profissão de policial, mas acho que me enganei - provocou, analisando o estrago feito.

Kemal respirou fundo. Nesse ponto, sua irritação começava a sair do controle. As manchas roxas nos braços e ombros de Narin eram um exemplo da 'boa educação' daquele cretino?

- Da próxima vez, a gente manda um pombo correio, senhor. - Bedir ironizou, enquanto revirava o espaço.

- Posso saber qual o motivo da visita?- Tarik retirou o avental e sacudiu, sem se importar com o pó se espalhando pelo ambiente, atingindo-os.

- Você esteve com Narin ontem a noite?- foi direto ao ponto. Sua vontade inicial fora procurar o maldito para uma conversa de homem pra homem, à moda antiga. Casos envolvendo violência contra mulheres, crianças ou idosos sempre o tiravam do sério. Era revoltante. Mais ainda se a pessoa afetada era alguém que conhecia.

Um meio sorriso desenhou-se no rosto fino.

- Você tem um mandado, policial?

Bedir seguia em sua incursão pelo cômodo, interessado e curioso.

- Eu não estou aqui para conduzi-lo Tarik, até porquê Narin não registrou uma queixa. Mas eu e você sabemos que, se o que aconteceu ontem acontecer novamente, não vai ser necessário um mandado pra resolver a questão, não é?

O anjo protetor Onde histórias criam vida. Descubra agora