Encurralados

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AYLA

Teria dormido uma hora, ou pouco mais, quando a pressão na bexiga a despertou. Esse era, de longe, o maior incômodo da gravidez até o momento.

'Deveria ter evitado o chá'- pensou, aborrecida por ter que se afastar do calor aconchegante que a envolvia. Encheu-se de ternura ao observar o rosto relaxado de Kemal. Ele confessara, antes de dormir, que há muito não tinha uma noite de sono ininterrupta. Esquivou-se devagar do braço forte. Poderia, perfeitamente, ir ao banheiro sem incomodá-lo.

Ajeitou a coberta para manter a temperatura e calçou as botas, descendo a escada cuidadosamente. Antes de sair, espiou no cômodo onde as mulheres dormiam. Um movimento sutil chamou sua atenção: Rayna ergueu a cabeça, indicando que estava acordada. Sinalizou que iria ao banheiro, tranquilizando-a. A mulher recostou-se novamente.

Ao sair, aguardou até que os olhos se acostumassem à penumbra. O brilho intenso da lua quase cheia permitia-lhe ver nitidamente o entorno da casa, ao passo que o alpendre parecia  mais escuro.

Enquanto usava o sanitário, a mente vagava pelos últimos acontecimentos. Kemal tinha revelado pouco, mas desconfiara que algo além do seu sequestro motivara a vinda da polícia turca. Talvez a insistência dele ao recomendar que o guia trouxesse os colegas e a guarnição local até ali discretamente. Claro que pretendia evitar uma possível fuga de Tarik, mas ficara com a impressão forte de que ele não contara tudo.

Aproveitando as mãos molhadas, umedeceu o rosto. Precisava acalmar os pensamentos agitados se quisesse voltar a adormecer. O contato da água fria na pele trouxe a lembrança de Kemal pulando para se aquecer após sair da cachoeira. Balançou a cabeça, sorrindo da lembrança. Ele tivera mesmo muita coragem.

De volta ao alpendre, um barulho estranho chamou sua atenção: seria o resfolegar de um cavalo? O guia levara o animal que Kemal usara. E se...animais do bosque poderiam se aproximar da cabana durante a noite? Ainda temerosa, lembrou-se dos cavalos atrelados à carroça. Mesmo assim, apressou-se em entrar.

Quase gritou quando mãos frias prenderam sua cintura. A respiração pesada na nuca deixou-a imobilizada de pavor. A voz arrastada não deixava dúvidas de quem seria o visitante inesperado:

- Eu não pude esperar até o amanhecer para ver você, 'nişanlım'...que bom que você veio até mim!

O hálito etílico denunciava o estado de embriaguez de Tarik. Àquela hora, o que ele estaria fazendo ali? Seu primeiro impulso era correr e gritar, mas procurava raciocinar. Lembrou-se de que Rayna estava acordada. Ela estaria escutando-os? Tentou soltar-se. Ele apertou mais forte.

- Tarik, você precisa me apertar assim?

Ele afrouxou levemente o braço. Girou a cabeça, de modo que pudesse olhar no rosto tenso. Virando-a de frente, ele abaixou a cabeça.  Apesar das sombras, o brilho intenso nos olhos frios se destacava, fazendo com que seu corpo inteiro amolecesse. 

- Tarik...

Ele colocou um dedo sobre os lábios e levando a outra mão até a cintura,  puxou um objeto pontiagudo: um punhal! A respiração pesada encheu-a de medo.

- Você vem comigo quietinha, ou prefere chamear o seu 'cão de guarda'? - a frase dita em tom ríspido, deu-lhe a certeza: ele sabia da presença de Kemal.

- Eu vim aqui cheio de vontade de te ver e você... vocês...cheguei bem na hora que vocês voltavam do bosque. Quem sabe o que eu teria visto se chegasse um pouco mais cedo, não é, Ayla?

Ela e Kemal se amando, apaixonadamente. Nem queria cogitar o que teria acontecido se Tarik os tivesse surpreendido. Sentiu um tremor forte começando a agitá-la. A mão de Tarik tapou sua boca. A pressão sobre sua barriga aumentou. 'O bebê!', pensou.

- Nós temos contas antigas a acertar...- Tarik sussurrava friamente, enquanto a empurrava na direção dos degraus de acesso ao alpendre. Retesou o corpo, tentando organizar os pensamentos. Percebendo-lhe a resistência, ele argumentou.

- Se quiser, ficamos aqui. Você grita e o seu 'cachorro' aparece. Eu o pego de surpresa com isso- levantou o punhal deixando-a ver a lâmina comprida. A risada seca encheu seus ouvidos, arrepiando-a inteira - Vai ser bem interessante ver o seu 'herói' estrebuchando antes de acabar com você, sua vadia...e depois, eu acerto as contas com as cadelas que te ajudaram.

Ela perdeu qualquer possibilidade de reação diante da descrição das imagens. Ele arrastou-a pelo braço como se ela fosse uma de suas marionetes. 

Seguiu-o, apática e fria, na direção do bosque. Estava sob o comando de um louco e que Allah a ajudasse a se proteger dele.

KEMAL

A mulher sacudindo-o fortemente tirou-o do sono pesado.  

Ergueu-se num impulso, esfregando os olhos e tentando entender o que acontecia. Ela apontava para o térreo.

- Ayla.  lá fora! Eu sair pra ver... Tarik está aqui! Levou Ayla no bosque!-  A menção do nome de Tarik disparou o alarme em sua mente. Ele estava ali?

Afastou o cobertor que ainda cobria as pernas e arrumou-se, colocando a arma no coldre de axila e cobrindo-a com a jaqueta. Desceu as escadas velozmente, percebendo que as outras mulheres ainda dormiam. Fez sinal para que  Rayna o seguisse até o alpendre.

- O que aconteceu, Rayna? - precisava entender a situação, embora sua vontade fosse sair em disparada rumo ao nada.

A mulher explicou precariamente que estava acordada quando Ayla tinha saído para usar o banheiro. Percebendo que ela demorava, aproximara-se da porta a tempo de ver Tarik arrastando-a na direção do bosque.

- Para que lado eles foram?

A mulher apontou a cachoeira. Ele já se afastava na direção indicada, quando avistou sinais luminosos no caminho que ladeava a montanha, vindo na direção da cabana. Seriam Bedir e a guarnição? Não podia aguardar para ter certeza.

- Rayna... - apontou as luzes - alguém está vindo. Eu não posso esperar. Ayla está em perigo! Se for a polícia, mostre a eles o caminho. Se não for, peça ajuda.

 Mergulhou na escuridão do bosque, deixando a mulher à espreita de quem estaria chegando.

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