Quase caos

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KEMAL

Apesar da quantidade de pessoas presentes, o evento transcorrera tranquilo.
Instruíra a equipe para monitorar o ambiente discretamente. Ao todo, eram quatro: ele, Bedir e outro investigador, além da 'isca': uma jovem policial com formação em danças tradicionais recém-incorporada à equipe, justamente por essa habilidade. Lale dançaria enquanto o grupo musical em que Ayla participava tocasse. Contavam ainda com o apoio dos homens de Zafer espalhados pela área.
Durante a performance  da colega, considerou acertada a estratégia: a bela morena de cabelos longos entregue aos movimentos da coreografia sensual, com certeza despertara a atenção de todos os homens presentes - incluindo o suspeito, caso estivesse por ali.
Naquele instante, o maestro recebia a placa de menção honrosa entregue pelos adolescentes do projeto. A salva de palmas se intensificou quando Ayla ocupou o centro do palco, conduzindo uma garotinha em trajes típicos que segurava um violino em uma das mãozinhas. A cena aqueceu seu coração, distraindo-o da tensão. Ela ajudou a pequena a colocar os dedinhos nas cordas e a segurar o pequeno arco, cochichando o que imaginou que fosse um incentivo para a criança. Posicionando o próprio instrumento, ela sinalizou e a orquestra juvenil iniciou a última parte do show. 
Admirou, embevecido, a figura de Ayla: o decote em forma de coração do vestido vermelho insinuava a firmeza dos seios arredondados. A visão dos cumes macios preenchendo suas mãos surgiu em sua mente, despertando um calor intenso. Rendeu-se à lembrança dos momentos a dois naquela manhã: o corpo perfeito da noiva era um paraíso onde ficaria pra sempre, se pudesse.  
Assistindo a apresentação, percebia o quanto ela estava confortável. Era incrível como ela parecia agigantar-se no palco. A agilidade com que tocava o violino extraía um som harmonioso, lindo. Pressionando o ponto entre os olhos, buscou concentração. Sentia-se orgulhoso, mas precisava focar no trabalho.
Um grande círculo se formou na parte de baixo do palco, quando diversas pessoas se uniram para dançar. O centro da roda era ocupado por grupos menores que se intercalavam com algum dançarino solitário mais corajoso, ou ainda, com casais.
Franziu o cenho quando o efeito da iluminação quase em 'blackout' se intensificou sobre as pessoas aglomeradas. Assim ficava difícil visualizar o que acontecia. Um alarme disparou em sua cabeça. Apanhando o celular, orientou os colegas para que redobrassem a atenção.
Sentindo um toque leve no ombro, virou-se, encontrando o rosto sorridente de Zafer. O homem, visivelmente satisfeito, se aproximou para falar com ele.
- A noite foi um sucesso, Kemal! – apontando para o lugar onde o homenageado estava, avisou – Eu vou levar o maestro e a mulher até o salão onde serviremos o coquetel. Minha esposa, Nene e Narin já estão por lá, cuidando de tudo. O pessoal da banda já sabe onde fica. Você vai com sua noiva assim que ela finalizar com os garotos?
Ele concordou. O coquetel oferecido em agradecimento pelas apresentações seria a ocasião perfeita para relaxarem das tensões do dia. Poderiam se divertir um pouco. 
O grupo iniciou a última canção, enquanto a orquestra juvenil saía do palco. Ayla agradeceu ao público, emocionada. Guardou o violino, deixando o palco para acompanhar os adolescentes até o depósito de instrumentos no interior do centro cultural.
Antes de descer, aproximou-se. Ele a recebeu com um beijo suave, parabenizando-a.
- Você brilhou, öğremet! Foi tudo perfeito!
Ela sorriu, satisfeita. Aproximando a boca de seu ouvido, avisou:
- Eu vou acompanhar os garotos e já volto. Você me espera aqui?
Ele piscou, confirmando. Ela fez menção de se apartar, mas num impulso, a deteve. Um aperto estranho no coração o incomodou, uma vontade de prendê-la entre os braços e não soltar mais.
Ayla ergueu os olhos cor de âmbar com uma expressão curiosa.
- O que foi, amor?
Agora foi a sua vez de sussurrar algo no ouvido dela:
- Só pra dizer que te amo, sevgilim. Muito.
Depositou um beijo leve na curva da orelha perfumada.
Ela deu uma risadinha se esquivando.
- Kemal! - soprando um beijo, saiu em direção ao grupo de jovens que a aguardava.
  Vendo que o público já se retirava, dispensou a equipe.  No dia seguinte, poderia conferir se havia alguma informação relevante. Mas ao que tudo indicava, a noite tinha sido improdutiva quanto à investigação.

TARIK

Tinha sido entediante acompanhar toda aquela palhaçada.
A única coisa pelo qual valera a pena estar ali, fora a figura esbelta tocando o violino durante as apresentações. Cada vez que ela aparecia, sentia a vibração de um desejo intenso varrendo suas veias, fazendo-o ansiar mais pelo que estava por vir. Estariam, enfim, como deveria ter sido desde o começo.
Deslocando-se com cuidado para não chamar a atenção de nenhum conhecido, dirigiu-se à via de acesso. Olhando o visor do celular, calculou o tempo. Dali a pouco, a verdadeira festa teria início.
Havia sempre alguma vantagem em manter relações estreitas com o lado marginal da comunidade e ele sabia tirar proveito disso como ninguém. Bastaram poucas liras e algumas garrafas de Raki barato para convencer os viciados a fazerem o que pedira. Entregara os galões de combustível e combinara o 'serviço', satisfeito em poder usar da 'amizade' oportuna em seu favor. Em vinte minutos, aquele circo pegaria fogo, literalmente. Os containers incendiados na área de despejo do quarteirão seria o suficiente para afastar os rapazes de Zafer e o 'cão de guarda' de Ayla pelo tempo que precisava para agir. 

Cobrindo melhor o rosto com o capote do agasalho, seguiu em direção aos fundos do prédio.O casal já o aguardava. A moça, de olhar nervoso, segurou o braço do namorado assim que o viu. Sorriu diante da expressão amedrontada. Nas madrugadas em que estivera observando a casa de Nene, acabara por descobrir coisas interessantes como, por exemplo, o romance secreto entre a filha adolescente de Zafer e um dos tais 'rapazes' de confiança. Surpreendera o casal num arroubo íntimo e ambos tinham se assustado muito com a possibilidade de que pudesse revelar o caso. Garantira o silêncio, mas avisara: aquilo teria um preço que cobraria no tempo oportuno. O momento chegara.

- Está tudo arranjado, abi.- o rapaz informou, mostrando a penca de chaves.- eu fiquei responsável pelo fechamento do edifício. Ele se dirigiu à garota, seco.

- Você já sabe o que tem que fazer, ablacim?

A garota assentiu, hesitante.

- Abi...o senhor não vai fazer nenhum mal a ela, vai?

O descontrole dava seus sinais iniciais. Respirou fundo.

- Eu tenho cara de quem faria mal a alguém, irmãzinha?- riu, com sarcasmo - aliás, se eu fosse ruim, o seu pai já saberia o segredo de vocês há algum tempo, não é?

A garota, envergonhada, abaixou a cabeça. Ele deu uma explicação apenas para persuadi-la a agir com calma. Não permitiria que seu plano fosse arruinado por nenhuma tolice.

- Eu tive um problema há alguns dias com a irmã Narin, Sila. Preciso da ajuda de Ayla para resolver a questão, mas, aquele noivo ciumento não a deixa conversar comigo em particular. Apenas dê o recado a Ayla e vai ficar tudo bem, tamam? - Voltou-se para o rapaz.

- Daqui a pouco, esse lugar vai ficar  agitado, abi. Assim que os garotos guardarem os instrumentos, mande-os pra casa. Você - apontou para a garota - fique colada em Ayla. Assim que ficarem sozinhas, aja conforme combinamos.

O casal parecia apreensivo. Acariciou o rosto da jovem, em seguida, tocando o ombro do rapaz.

- Vai correr tudo bem! Ninguém vai se machucar e, no mais, vocês merecem viver livremente o amor de vocês...o irmão Zafer não precisa saber de nada, precisa? - seu tom quase insinuou que poderia mudar de ideia - acho que não...não é ele quem defende tanto a liberdade de escolha entre os casais, na comunidade?- riu, com ironia.

Sua ameaça velada selou de vez o acordo. O casal concordou com o que dizia.
O som de sirene  disparada indicou o início da confusão.
Enfim, estava tudo pronto para o seu show particular.

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