'Por minha Ece'

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Kemal

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Kemal


Os últimos raios do sol iluminavam o bairro de Sulukule quando chegou à cena do crime. O desgraçado fizera de novo. Aquele era o sexto caso relacionado aos Rom.

Os festivais ciganos atraiam multidões de toda Istanbul e turistas dispostos a desfrutar de boa música, danças, culinária e bebidas típicas; ou seja, era o tipo de evento ideal para ver sem ser visto.

Entrou com cuidado no casarão. O risco de desabamento era eminente, conforme as placas indicativas. Abaixou-se e, com as mãos protegidas por luvas finas, tocou delicadamente a pele arroxeada do pescoço do cadáver.

Uma das peritas forenses do departamento aproximou-se, saudando-o friamente. Entendia a reação: haviam sido amantes por um tempo, mas desistira ao perceber que ela esperava mais do que estava disposto a dar. Não se importava com o tratamento. Nunca fora de seu feitio enganar ninguém para obter sexo descomprometido.

- Algo de novo, Leyla?

Ela negou.

- Mesmo padrão: mulher jovem, estrangulada. Corpo banhado em vinho, lenço vermelho cobrindo no rosto, rosa na mão esquerda. Mordidas nos seios e ventre, sem sinais de penetração. - apontou a garrafa de vinho - somente uma taça e... o bilhete.

Com uma pinça, ergueu o pequeno papel pardo escrito em Romani: 'Por minha Ece'.

Ela apontou as pontas dos dedos da vítima. Marcas de calos esbranquiçados, característica comum a instrumentistas.

- Essa era violinista.

Mais uma semelhança com a outras: todas tinham envolvimento com alguma forma artística ligada à cultura Rom.

- Esse cara tem um gosto muito peculiar. Ele sabe muito bem onde encontrar o que procura, Kemal.

Concordou, preocupado. O caso começava a despertar a atenção da imprensa, por mais que o departamento tentasse abafar os detalhes. Após fazer mais algumas anotações, saiu. O distrito era familiar - ninguém da equipe sabia, mas ali estavam as suas origens. Avistou o parceiro próximo aos garotos que tinham achado o corpo. Alcançou-os em passos largos.

- E aí?

- Eles estão irredutíveis. Boa sorte, abi.

Observou os meninos, cinco ao todo. O menor devia ter dez anos. O maior, uns quinze. Cumprimentou-os no dialeto local. Os garotos demonstraram surpresa. Retirando algumas pastilhas no bolso da jaqueta, ofereceu aos pequenos. Os menores aceitaram, apesar do medo visível. O maior resistiu. Ele prosseguiu usando o dialeto para se comunicar.

- Rapazes, algo muito sério aconteceu aqui. – os garotos nem piscavam, provavelmente curiosos e impressionados pelo policial desconhecido falar em Rom.- alguém está fazendo coisas muito ruins com as nossas garotas. Vocês não querem que isso continue acontecendo, querem?

Eles negaram em uníssono.

- Então é melhor colaborar. Vocês sabem de algo que possa ajudar nas investigações?

O garoto mais velho tomou a frente dos demais.

- Só viemos procurar alguma relíquia pra negociar no bazar! Ninguém viu nada, abi!

Kemal estreitou os olhos e fez um sinal com a mão para que ele continuasse.

- A gente já tinha olhado o casarão. Estávamos saindo quando Bulut viu a moça no escuro, muito quieta. Aí... saímos correndo! Foi só isso!

- E vocês não mexeram em nada, mesmo?

- Não, senhor.

Percebendo o tremor nos lábios do menorzinho, puxou-o pela mão. O menino fez cara de choro. Franziu o cenho simulando irritação e ameaçou:

- Vamos resolver isso aqui, ou vocês querem que eu procure o irmão Zafer?

A menção do nome do atual líder do grupo fez com que o garoto empalidecesse. Sem hesitar, o pequeno disparou:

- Mostre o que você achou, Ozan!

O mais velho enfiou a mão no bolso da calça a contragosto, entregando a Kemal um anel masculino de cobre. No topo laqueado, destacava-se o desenho em alto relevo de uma serpente enrolada numa adaga. Entendeu a resistência dele em entregar o achado: esse tipo de joia renderia um bom dinheiro no bazar.

Certificando-se de que não havia mais nada com os meninos, dispensou-os. Guardou a peça num pequeno saco plástico e vedou. Mostrou a descoberta ao parceiro que se aproximava, com dois copos de café. O homem abriu a boca, surpreso.

- Às vezes eu acho que você é um bruxo, Kemal! Como conseguiu arrancar isso dos meninos? E onde foi que você aprendeu o dialeto, abi?

Desconversando, sugeriu:

- Melhor reforçar a vigilância nesses dias, Bedir. Algo me diz que isso- mostrou o anel - vai nos aproximar do nosso maluco. O suspeito pode considerar a hipótese de voltar para pegar o que esqueceu.

Despedindo-se, deixou a área e partiu rumo ao aeroporto.

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