Caminhos de esperança

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AYLA

Engoliu poucas colheradas do caldo, mas devorou todo o pão que acompanhava a refeição. Precisava se fortalecer. De vez em quando, a garota apontava algum objeto e dizia a palavra correspondente no próprio idioma. Repetia para não decepcioná-la e, também, para fortalecer o contato. A jovem ria de seus erros. Tentava manter uma relação afável com a garota, ganhar a confiança dela. Planejava escapar o mais rápido possível e, para isso, necessitaria da ajuda de alguém que conhecesse o bosque.

Quando terminou de comer, agradeceu. Lembrou-se do som que ouvira mais cedo: alguém na casa treinava violino. O som do instrumento atravessara sua alma. Ela se iluminou diante de sua sinalização. Despejando uma enxurrada de palavras sem sentido, balançou a cabeça e apontou para o próprio peito, repetindo em turco precário 'Eu violino! Eu violino!'. Se despediu com gestos de que voltaria em breve. Aquela seria uma boa abordagem de aproximação. Aliás, excelente!

Tão logo ficou sozinha, abriu os botões do vestido, esquadrinhando o próprio ventre. A parte acima dos pelos pubianos estava levemente avolumada, a área mais endurecida do que o normal. Continuou o autoexame, agora, nos seios. A cor dos mamilos parecia escurecida e as mamas estavam sensíveis ao toque. O simples roçar da palma de sua mão foi quase doloroso.

Lembrou-se da sonolência excessiva que associara com depressão pela situação em que se encontrava. Não era expert no assunto, mas teve certeza de que realmente havia uma nova vida aninhada no seu corpo. Fechando a roupa, refez as contas. O último sinal de seu ciclo fora o sangramento leve na semana de pausa entre cartelas, alguns dias depois da primeira vez que ela e Kemal tinham estado juntos. Depois, continuara normalmente a ingestão da pílula, sem se preocupar pela ausência do fluxo.

Arrependeu-se por adiar a ida à ginecologista indicada por Narin. Um bom exame teria detectado a gestação. De qualquer modo, seu corpo era saudável e forte. Agarrou-se a esse pensamento, depositando a concha da mão sobre o ventre. O bebê ficaria bem. Sentiu uma vontade imensa de chorar. Um bebê... fruto da paixão entre ela e Kemal!

Ele ficaria louco de felicidade. Até sonhara com uma menininha! A onda de ternura que a invadiu só não foi maior que o forte instinto de defesa que aflorou em sua mente. Aproveitaria o interesse comum pelo violino para se aproximar mais da garota e, através do contato, descobrir como poderia fugir. Precisava, a todo custo, driblar o medo e se fazer de conformada diante dos planos de Tarik. 

A constatação da gravidez mudava tudo. Não apenas sua vida estava em risco, mas também, a vida do seu pequeno amor. Tinha que manter seu bem estar físico e mental. Se bem conhecia Kemal, ele devia estar movendo céus e terras para encontrá-la. Precisava confiar que tudo ficaria bem.

KEMAL

Os donos da pousada sorriam entre si, assistindo-o devorar o jantar. Assim que chegara, os velhinhos o tinham cercado de atenção. O homem era de Ismirna e a esposa, de Istambul. Fora um alívio imenso descobrir a pousada de compatriotas em Malko Tarnovo. Descobrira o lugar numa pesquisa rápida na internet. Segundo as informações lidas num blog voltado para turistas turcos, a pousada simples lhe parecera ideal: era fora da rota turística comercial e bem próxima à vila de Brashlyan. Pretendia pernoitar ali e sair logo que o dia amanhecesse.

Planejava se aproximar do acampamento discretamente. Pelo que fora informado, o grupo Rom local era bem resistente ao contato com 'gadjés'- os não ciganos - ou mesmo com membros de outros grupos. Manteria a farsa de ser apenas um turista, não se identificando como investigador, muito menos informando sobre sua busca. Tarik certamente estaria confiante demais na segurança do 'esconderijo'. Nesse caso, havia um ditado bem conhecido no meio policial que reanimava seu ânimo: 'excesso de confiança é um ótimo tranquilizante para os tolos.' Por sua vez, seria cauteloso em cada ação.

O senhor aproximou-se. Perguntou se praticava montanhismo. Informou que o filho prestava serviços como guia. O rapaz conhecia cada cantinho e trilha, já que costumava acompanhar gente do mundo inteiro que vinha conhecer a região.

- É permitido acampar por mais tempo nas montanhas, senhor? - Faria com que o rapaz o levasse para o ponto mais próximo do acampamento.

- Com certeza, filho! Há toda uma estrutura de camping para quem gosta de ficar em contato com a natureza. Aqui mesmo, temos barracas e outros equipamentos para aluguel que podem te interessar.

Agradecendo à boa sorte, combinou de encontrar o rapaz cedo no dia seguinte. Pediu que o senhor reservasse tudo que precisaria para acampar no lugar. Elogiando a refeição saborosa, se despediu. Já no quarto, deitou-se na cama de casal sentindo a empolgação pela aventura do dia seguinte. Recebeu com alívio a onda de positividade que invadiu seu corpo. Suas esperanças se renovaram só por saber que estava cada vez mais perto de reencontrar Ayla.

No meio da noite, despertou. Uma voz doce o chamava, vindo de algum lugar próximo mas, ao mesmo tempo, distante.

- kemal! Acorda, filho!

Abriu um olho, deparando-se surpreso com a figura feminina que vira pela última vez há muitos anos. Um nó se formou em sua garganta.

- Anne!

- Sou eu, filho! - puxando-o pela mão, ela insistia que levantasse - Vem! Você precisa ver isso...

Ainda confuso, seguiu-a. Ela abriu a porta do quarto, atravessando a pequena varanda externa. Os dois avançaram na direção do bosque por um curto caminho de terra. A mãe se virava de vez em quando e sorria. Ele correspondia, encantado. Ouviu barulho de correnteza. A estrada terminou num lago formado pelas águas cristalinas de uma linda cachoeira. O lugar era incrível.

De repente, não viu mais a mãe. Procurava encontrá-la pela paisagem quando a ouviu chamar, dessa vez, na direção da queda d'água. Ao localizar a figura amada, foi impossível não render-se à emoção: em pé sobre uma rocha achatada, viu sua mãe e Sâmia, a mãe de Ayla. Ambas felizes, segurando as mãozinhas da criança sorridente de cabelos longos - a mesma que vira em outro sonho. Sua mãe convidou-o:

- Venha, Kemal! Venha ver a sua menina, filho!

Embevecido, entrou no lago notando as águas estranhamente mornas. Chegando no ponto em que elas estavam, sentiu bracinhos finos envolverem seu pescoço. Beijou a pequena, emocionado, apertando-a forte nos braços.

- Papai - a menininha apontou para a margem - a mamãe também está aqui! Veja!

Ele teve tempo apenas de se virar e ver o sorriso de Ayla, antes de despertar. Sentiu o peito se expandido e chorou, comovido com o que vira.

Sua filhinha, mais uma vez, o visitara num sonho. E o fizera estar novamente com as mulheres mais importantes da sua vida.

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