Tempestade

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Eu não sei quanto tempo eu dormi. Eu acordei com os estrondos de uma tempestade marítima. As ondas batiam com força no casco do navio.

Maria se agarrava ao meu peito, eu a abracei.

- Vá ficar com as outras meninas. Elas devem estar no quarto de Tavaras... – Ela me olha, tentando disfarçar seu medo. – A primeira noite é sempre a mais assustadora. – Eu digo sorrindo. – Mas vai ficar tudo bem! – Tento tranquilizá-la. Ela me beija.
- E você? – Ela pergunta. Percebo que seu medo não é apenas por ela e isso aquece meu coração.
- Eu vou estar atrás do timão, onde é o meu lugar.

Eu vejo ela abrir e fechar a boca várias vezes, mas nada diz. Eu levanto, visto minhas calças. Pego casacos grossos de couro, jogo por cima dos ombros. Olho para ela antes de sair.

- Sabe onde fica o quarto de Tavaras? – Espero sua confirmação e me jogo para a tempestade.

Os raios estão caindo direto na água, a corrente elétrica faz desenhos assustadores nas ondas. O barulho na proa é ensurdecedor. Vejo alguns homens corajosos ensopados correndo de um lado para o outro obedecendo as ordens de Tavaras.
Ela está atrás do timão, feroz como sempre. Segurando em seus braços o peso de ser minha imediata. Ela apoia a perna direita na encosta do navio, seus cabelos grudados na testa. Urrando com cada onda que nos atinge. Subo as escadas e pego o timão junto dela.

Essa não é a nossa primeira e nem a última tempestade.

- Achei que você tivesse morrido. – Ela diz sorrindo.
- Hoje não amor! – Eu respondo, virando o timão a todo vapor para a nossa esquerda.
- SOLTEM AS VELAS – Gritamos em uníssono. Nos olhamos.
- Como Teresa está? – Pergunto.
- Firme, como sempre. – Ela responde.
- E nossos homens?
- Perdemos dois. – Ela engole em seco.

A tempestade está nos castigando. Rebelde, gelada, impiedosa. Minha mente vaga até o quarto que abriga minhas outras três mulheres, vai até minha filha, sua mãe e minha madre. Meus olhos param em Tavaras.

- Não é por mim, é por nós. – Ela fala, lendo meus pensamentos.

Eu puxo uma corda que tem ao pé do timão, são cordas grossas, você deve se perguntar, porque elas existem? Essas cordas são uma superstição boba dos marujos, mas uma questão de honra para os piratas.
Passo a corda pela minha cintura e enrolo no timão.

Existe uma lenda que diz que se o navio afundar, deve levar consigo o seu capitão, porque ele tem de ser o último a sair, prezando pela segurança e saúde de todos ali. Se o capitão fraquejar, se ele sair de trás do timão, por um segundo se quer, é o fim para toda a tripulação.

Isso e para evitar que uma onda alta o derrube para fora do navio.

- VAI! – Eu ordeno para Tavaras. Ela titubeia. Desce as escadas e grita para os marujos entrarem e se protegerem.

Eu fecho os olhos e começo a cumprimentar os deuses das águas que hoje estão em guerra com o céu. Por um momento penso que seria um excelente dia para eu pagar pela centena de pecados que eu tenho em minha conta.

Uma madeira de suspensão solta da proa e voa em minha direção, consigo desviar, mas ela acerta a parte de trás do timão, entortando a posição da vela traseira. Resmungo em resposta.

O timão pesa mais a cada instante. A minha pele está congelando e em minha cabeça eu revejo os sorrisos das mulheres da minha vida.

As mãos começam a cortar pelo atrito, mas eu nem se quer consigo sentir a dor. Só rezo para ser capaz de passar por esse inferno.

As cordas apertadas em minha cintura me lembram de todas as promessas que eu já fiz, todas as vidas que eu salvei e as que eu arruinei também.

Uma onda escurece minha visão vindo em nossa direção, eu sei que eu posso virar o barco e continuar na tempestade, mas se eu quiser sair dela, eu preciso passar pelas quebrantes. Seguro firme no timão e mergulho com Teresa.

A onda joga destroços contra o meu peito, levando meu ombro para trás. Eu sinto meu corpo reclamar do impacto, mexo o braço para ter certeza de que posso continuar, para a minha surpresa os movimentos estão limitados. Começo a dar razão para a Dona "um imprudente suicida".

Passamos por aquela onda, vai vir mais uma e eu preciso segurar. O timão implora para ir na outra direção.

- VOCÊ É INSANO – Tavaras grita. Surgindo em minha visão.

Não sei nem dizer se estou delirando ou não. Ela tem cordas na sua mão. Enrola na sua cintura e no outro lado do timão. Eu começo a censurá-la. Ela não me da ouvidos.

- Obedeça seu capitão e vai juntar-se aos outros. – Eu digo. Ela ri debochadamente.
- Você só é capitão no nome. – Ela aperta a bandana na testa, para segurar os cabelos e impedir que isso atrapalhe sua visão. Segura o timão junto comigo e diz. – A gente vai sair daqui juntos.

Eu concordo. Ela é completamente doida. E deve ser por isso que meu corpo e meu coração não sobreviveriam sem ela.

A próxima onda vem borbulhando em nossa direção, mais rápido do que qualquer coisa que eu já tenha visto. Vejo Tavaras se posicionar em cima de suas pernas, eu faço o mesmo.

- Você deve ter irritado os deuses. – Ela faz piada. Eu sorrio.
- Você não faz ideia do quanto. – Respondo.

A onda nos atinge estraçalhando algumas das janelas do alto. Eu vejo Tavaras não fechar os olhos nem por um segundo, suas mãos firmes em torno do timão. Tem medo rondando nós dois, mas também tem camadas espessas de responsabilidade, coragem e loucura.

Nossas roupas estão encharcadas, grudadas em nossos corpos, tentamos desviar dos escombros o máximo que dá, a onda joga muita água em nossa direção e precisamos poupar o oxigênio. Vejo Teresa imergir.

Eu me preocupo por todos nós. Sei que sou um bom marinheiro, somado as forças de Tavaras, o mar tem oponentes a altura.

A água nos deixa, vejo Tavaras respirar ofegante. Olhar o horizonte e ver o claro do céu, olhar pra mim e sorrir, antes de desmaiar.

Não sei dizer se é dia ou não, o céu está confuso. Mas só de não estar mais escuro, já é um alivio. Passamos pela tempestade.

Tavaras está desacordada, mas eu preciso continuar segurando o timão. Puxo a corda amarrada ao sino perto da minha posição. Sei que os homens vão demorar um tempo para associar o som ao pedido de socorro, mas é a melhor opção que temos.

Vejo Berenice sair pela porta da proa, vestindo suas roupas de combate, completamente estarrecida. Eu sorrio, eu não sei porque esperei que fosse um homem que viria nos socorrer. Berenice corre em minha direção. Desamarra Tavaras, seu semblante um misto de preocupação e alívio. Vejo elas entrarem na parte coberta do navio. Observo Asnos passar por elas, antes de perceber minha visão ficando turva.

Não consigo entender o que Asnos me diz antes de não enxergar mais nada.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora