As cartas desmentem

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Eu subo na poupa. As velas estão prontas, a bandeira também. Nossa caveira com cabelos compridos diz a todos que se trata de um navio pirata e ao mesmo tempo, um navio mulherengo. Passamos ilesos por toda e qualquer embarcação imperial.

O chão está bem limpo, as cordas bem firmes, o timão me chamando. Está tudo em ordem, nada que possa atrasar nossa partida em evidência. Caminho pela hospedagem, as redes já estão postas. Os barris de mantimentos estão cheios, as cabines estão limpas e organizadas. Temos pólvora, armamento e muito rum. Temos suplementos para passar 3 meses no mar, e só precisamos de duas semanas.

Entro na cabine do capitão.

Eu já estava com saudades do cheiro de sal.
Minha cabine é um espaço amplo. Possui uma janela larga do outro lado, uma mesa grande em sua frente, uma poltrona confortável, um monte de papeis espalhados em cima da mesa. Na parede esquerda, uma adega em meio a muitos livros de todas as nações. Gosto de colecionar conhecimento. Na parede direita, minha cama, presa as madeiras grossas, cortinas espessas em sua volta. Em frente a mesa possui duas poltronas, também confortáveis, mas de menor estatura.

Caminho até a adega, puxo um baú na parte inferior das prateleiras, o carrego até a mesa. Volto para buscar algo para beber. Escolho o whisky do meu pai, essa garrafa vai durar para sempre. Sirvo uma dose. Me sento em minha poltrona, abro o baú, espalho as cartas, coloco os pés em cima da mesa, escolho a posição mais confortável possível, relaxo os ombros, beberico minha bebida e me coloco a ler.

Dentro daquele baú, existe a parte mais dolorosa da minha vida. Estão as cartas da Dona.
Minha mulher. Ela envia uma carta para cada porto em que eu vou parar ao longo do ano, para nos manter perto, eu faço o mesmo, envio as cartas sempre que chego em terra. Nosso amor sobrevive a distância, sobrevive aos anos, sobrevive as nossas diferenças, mas não sobrevive a mim.

Há um tempo, Dona disse que não poderia mais suportar a ideia de, como ela mesma disse "minha tendência suicida". Ela pode suportar as outras mulheres, ela pode suportar meu trabalho no mar, mas não ao fato de que eu estou sempre correndo riscos "imprudentes e desnecessários".

Em um ano, cheguei em Torunta e ela estava cuidando de minha mãe, belíssima, sua pele escura queimada pelo sol. Seus cabelos crespos e negros fazendo ondas ao longo do seu corpo, as saias amarradas nas pernas. Ela me viu aproximar-se e levantou, estava acocada ao lado de minha mãe, tentando a convencer a comer o almoço, assim que levantou e sua atenção voltou-se para mim, pude observar minha mãe dar a comida para o cachorro. Eu lembro de ter sorrido tanto. Ela correu em minha direção e me abraçou.
Aquele mês foi incrível. Eu não conseguia pensar em mais nada, sem ser em estar em seus braços. Dormimos juntos todas as noites. Mas antes de partir, tivemos uma discussão amarga. Eu pedi para que ela subisse no navio comigo e ela me lembrou o quanto não suportava o meu negócio. Me questionou sobre o porque eu não largava tudo e ficar com minha mãe, ela e as meninas em Torunta.

- Você já é rico! Não vai nos faltar nada. – Ela dizia, com as mãos balançando freneticamente. Caminhando de um lado para o outro do quarto.
- Eu não posso simplesmente abandonar tudo Dona. Eu faço parte de algo muito maior do que eu! Do que nós dois. – Eu disse, já cansado daquela discussão.
- Eu pensei que nada fosse maior do que a sua família. – Ela me disse com os olhos marejados.
- Sobe no navio comigo, a madre vai se você estiver lá. Vamos minha rainha, seja minha mais do que apenas alguns dias. – Eu imploro.
- Eu não vou. Sua vida corre perigo, a da Tavaras também e eu rezo por vocês todos os dias da minha vida. Se eu estiver no mesmo navio, junto de sua mãe, eu vou ter que rezar por vocês e por nós! – Ela me jogou uma tigela de coco.

Eu rio com a lembrança. Eu levantei, a abracei, pedi desculpas e a beijei. Naquele ano, eu subi triste ao convés e ela não foi se despedir. Alguns meses depois em um porto qualquer, a carta mais amarga já escrita, me aguardava. Nela, Dona me pedia para que eu escolhesse, entre ela ou o mar. Eu estou segurando essa carta, com o papel velho e manchado, nesse momento. Pensando o quão burro eu pude ter sido.
Passou-se semanas para que eu pudesse responder, e na resposta, eu disse que era o mar, onde eu pertencia e onde eu deveria dedicar minha vida, como minha linhagem exigia de mim.

Dona não respondeu essa carta.
Passou-se mais alguns meses e deu o tempo de voltar a Torunta. Mas dessa vez Dona não me esperava na casa de minha madre. Minha mãe disse que ela vinha 3 vezes ao dia para lhe dar o que comer, banhar e coloca-la para dormir. Eu perguntei onde Dona estava instalada, mas minha mãe não quis me dizer.

Lembro de ter revirado a cidade inteira naquela noite, mas quem a encontrou foi Tavaras. Afinal, a amizade delas é mais antiga do que o nosso amor. Eu lembro que Tavaras me disse "se eu fosse você, eu não iria, porque isso vai mudar tudo". Claro que eu não ouvi, assim que eu soube onde ela estava, eu me despenquei em sua direção. Nada mais importava.

Entrei floresta tropical a dentro, ela estava em uma cabana no meio do mato, perto de uma lagoa. Cheguei, bati na porta, vi um lampião ascender e a porta abrir. Assim que ela me viu na soleira, revirou os olhos, mordeu os lábios e ponderou se queria ou não que eu estivesse ali. Não deixei que ela respondesse, apenas a beijei e fechei a porta.

Em segundos ela não vestia mais seu vestido praieiro, estava montada em mim, fazendo com que eu visse estrelas. Nossos movimentos eram tão empolgados, selvagens e saudosos que eu nem pensei que algo poderia nos parar. Eu estava tremendo de saudade, do seu cheiro, do seu jeito, da sua pele, dela em um todo. Achei que desmontaríamos a cabana antes do amanhecer, até que eu escuto um grunhido. Som que não provinha de nós dois.

Ela sai de cima de mim e vai até o quarto. Eu a acompanho, ela caminha apressada. Atrás da cortina, para a minha surpresa, está um bebê, deitado em um berço, cheio de flores em sua volta. O bebê é mais pálido do que Dona, com os cabelos pretos e boca carnuda. Uma mistura linda de... nós dois.

- Mas o que...? – Eu começo.
- Não fala nada. – Ela me interrompe, pegando o bebê recém acordado no colo.
- É meu? – Eu questiono, tentando chegar perto da coisinha. Dona me empurra com a mão que não segura a criança.
- Sua. É uma menina. – Ela diz, revirando os olhos. De quem mais seria? Como eu consigo ser tão estúpido?
- Porque não me falou nada? – Eu questiono, tentando novamente chegar perto.
- Pra que? Você já fez a sua escolha. No que mudaria? – Eu senti cada palavra.
- Isso muda tudo Dona! Tudo! – Eu digo, apontando para o bebê.
- O nome dela é Linda. – Ela diz, acho que para que eu pare de chamar a criança de "isso".

Eu lembro que eu tentei pegar o bebê no colo e que ela negou várias vezes. Mas no final da noite a Linda dormiu deitada em meu peito. Ela tinha somente alguns meses quando isso aconteceu. Dona não quis embarcar comigo e naquele ano também não pediu para que eu ficasse, pelo contrário, não queria ter mais nada a ver comigo.

Linda fez 3 anos há pouco. Eu as visito todos os anos, durante um mês. Minha comunicação com a Dona passou de cartas apaixonadas a cartas saudosas, contando como a Linda está crescendo, uma lista de suas necessidades, envio de dinheiro... Eu leio linhas e mais linhas de como minha filha cresce bem e saudável em minha ausência. Há alguns meses Dona me contou sobre seu novo amante, eu tive que ler uma carta em que ela diz estar amando um outro homem, pede minha compreensão e pontua o quanto ele faz bem para a Linda.

Infelizmente eu não tenho como dizer as palavras exatas que foram escritas, porque eu queimei aquela carta. Precisei de muito autocontrole para não mandar queimarem o homem também. O ciúmes me consumiu naquela noite. Visitei todos os bordeis da cidade. Não escrevi mais nada desde então. Apenas mandei as quantias de dinheiro. Não sei como vai ser a recepção esse ano. Estou ansioso, com saudade e morrendo de inveja de um nativo com um emprego de merda, mas que dorme na cama da minha mulher todas as noites, pega minha filha no colo e visita a minha mãe. Ele vive a minha vida em terra, enquanto eu vivo a vida no mar. O quão divino seria se eu pudesse me dividir em dois?

No final das contas, talvez eu não possa ter tudo que eu quero.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora