Porque a garota tem uma faca?

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Escuto uma movimentação no quarto antes mesmo de abrir os olhos sei que alguém me observa dormir. Faço uma lista mental de todas as pessoas que teriam motivos para me matar, para minha surpresa são muitas. Pego a faca que sempre deixo em baixo do travesseiro e pulo em direção ao individuo, um salto cambaleado, tomando noções do corpo recém acordado. De olhos abertos observo Tavaras se esquiva do golpe com graça, me dando um chute nas costelas. Sei que ela poderia ter chutado muito mais forte se ela quisesse, assim como eu também sei que existem formas mais gentis de se acordar um homem. Sorrio, sento na poltrona e coço meu queixo. Estou descalço apenas com a bermuda de baixo e sem camisa, as familiares moedas no cabelo negro, isso não me desperta nenhum pudor, pelo contrário, me sinto bem confortável, já Tavaras enrubesce. Observo o vestido solto que ela usa, lembrando-me da curiosidade que eu tive sobre ver Tavaras vestida como uma apropriada donzela. O vestido não tem nada de seda, pelo contrario, possui renda e couro em algumas partes, contudo muito mais afeminado do que suas peças de pele de coelho. Ela observa meu olhar seguindo meus olhos até seu corpo, numa reação instantânea abraça seus próprios braços.
- Bom dia amor! – Eu digo, dando a entonação de deboche a palavra "amor". Nunca perguntei à ela se isso a ofende, ou se ela gosta? Acredito que um dia eu deveria. Sempre que estamos a sós e relaxados como agora, brinco com ela desta maneira. A peço em casamento, pergunto se ela prefere rosas ou margaridas? E ela sempre revira os olhos. Gosto dessa impaciência.
- Bom dia meu Duque! – Ela fala, com aquela voz doce que ela sempre utiliza comigo, voltando os olhos que estavam na janela até mim, os pousa com ternura, mas ainda assim autoritária, uma mistura louca da natureza de força e graça.
- O que te traz aos meus aposentos, em especial vestida? – Sorrio. Ela ainda está de pé a poucos metros a minha frente, ela sorri, modelando seu rosto. Se aproxima lentamente estalando os lábios. Parece um tigre e eu sua presa. Coloca as mãos nos encostos laterais da poltrona que estou sentado e me fita. Ela faz isso com as pessoas, só de caminhar, faz com que nos sintamos imponentes.
- Negócios. – Ela fala pausadamente, dando calafrios em minha espinha. Seus lábios estão tão próximos aos meus que consigo sentir o cheiro doce das folhas de chá que ela bebericou antes de vir. Tenho medo do cheiro que ela deve estar sentindo dos meus lábios e me censuro pela quantidade de vinho que ingeri na noite anterior. Seus peitos estão bem desenhados pelo decote do vestido e próximos ao meu corpo. A posição dominante que ela escolheu é perfeita! – E quanto eu ainda estar vestida... Meu duque, isso nós podemos resolver. – Eu sorrio feito uma criança, ela também. Passo a mão em seus ombros e puxo os fitilhos do espartilho de couro que prende o vestido de pregas, não estava tão apertado, então foi fácil de tirar. Escorrego a vestimenta pelo corpo de Tavaras deixando seus seios a mostra, pequenos e macios, rosados e belos. Antes que eu consiga colocar meus lábios em seu corpo ela questiona – Nesta manhã a garota escocesa sumiu, juntamente com Otávio, Asnos apenas disse que estava curioso e agora temos uma dívida de seiscentas moedas de ouro e você uma carta da sua "prima" em cima da mesa dos navegadores. Explique-me! – Fui pego de surpresa com todas estas acusações, jogadas sem rodeios em cima de mim e claro, não consigo disfarçar minha cara. Tavaras sorri e começa a beijar meu pescoço, sinto seus seios passarem pelo meu peito, perdendo o foco do meu raciocínio por um momento.
- Comprei a garota. – Falo, sem muito rodeio, ela sessa os beijos por um segundo e depois retoma as caricias, como se estivesse aguardando o restante da história. – Otávio e ela estavam apaixonados. Precisei fazer algo a respeito, antes que travasse uma guerra entre Espanha e Escócia. Seiscentas moedas sai barato perto do fim de uma aliança com a Espanha. – Ela sorri, sinto seus lábios se esticando perto da minha pele, sei que ela compreende a necessidade de mantermos os espanhóis contentes. Nosso negócio já zangou muitos monarcas espanhóis e nossa aliança com a realeza Espanhola infelizmente ainda é muito frágil – Quanto ao fato dela ser minha prima, uma mentirinha boba. Afinal tenho muitas primas, ela pode ser mais uma. Otávio tem dinheiro suficiente, não precisa de um dote, só precisavam de um título imbecil. Eu lhes dei.
- Porque não cobrou as seiscentas moedas de Otávio? – Tavaras me olha nos olhos, questionando minha decisão. Com ela falando faz todo o sentido. Eu poderia apenas ter emprestado meu nome, não meu dinheiro, a garota não é minha, porque a divida deveria de ser? Abano as dúvidas da minha cabeça.
- Oras Tavaras, eles estão em lua de mel! Já pensaste que este ouro pode fazer falta? – Ela abre seu melhor sorriso, jogando a cabeça para trás em puro divertimento. Eu sorrio junto aproveitando para beijar seus seios, ela mistura a risada a um gemido de prazer, criando um som lindo. Suas mãos estão atrás da minha nuca brincando com as ondas dos meus cabelos, minhas mãos a seguram em meu colo, suas pernas na volta das minhas em uma contração perfeita.
- A embarcação está pronta. Totalmente carregada. Só aguardando suas ordens. – Ela fala entre suspiros. Eu apenas concordo com a cabeça. Tenho ideia de viajar antes da próxima lua, amanhã - E quanto a garota, já decidiu o que fazer com ela? – Eu tinha esquecido completamente da mestiça. Paro de acariciar seus peitos e reparo em seus olhos. Os mesmos me questionam mais uma vez.
- Se você está aqui, quem está com a garota? – Pergunto.
- Deixei um dos nossos homens na porta. – Eu reviro os olhos. – Ela tem uma faca! – Tavaras diz como para corrigir-se, eu a encaro incrédulo. – Convenhamos ela não vai muito longe. – Tavaras joga os braços em volta do seu corpo. Eu a retiro do meu colo.
Eu não falo nada. Apenas começo a me vestir. Porque a garota tem uma faca? Tavaras deve ter dado a ela para que pudesse defender-se caso algum homem tentasse violá-la. Contudo para isso Tavaras deveria confiar na garota, por mais que a mesma não tenha nenhuma noção de combate e Tavaras pudesse arrancar a faca de sua mão em um piscar de olhos, esta foi uma atitude imprudente.
Encaro Tavaras, ela me pede desculpas pelo olhar e eu apenas balanço a cabeça. Pego meus apetrechos e saio porta a fora. Ao caminho sou surpreendido por algumas damas que ainda estão em nosso domínio, me oferecem chá, pães e bolos, nego tudo a passos largos rumo à cabana de pinos. Para a minha surpresa o homem continua em seu posto, aparentemente não vejo nenhuma jugular esvaindo em sangue. Apenas passo por ele, o mesmo levanta assim como no exercito e me saúda. Eu aceno com a cabeça e o dispenso. Vejo pegar suas coisas e sair. Entro na cabana e observo a garota. Está sentada junto à mesa central, comendo seu pão de ervas e bebericando seu chá. Ela fecha a cara assim que me vê. Puxo uma cadeira e sento do outro lado da mesa.
- Pensei que não viria me ver, para garantir seu troféu, ó poderoso chefão dos mares, senhor da coisa toda. – Ela ironiza bebendo mais do seu chá. Prometi a mim mesmo não arrancar a língua dela. Domesticada pode ser que faça um grandioso trabalho. Se eu arrancar sua língua seu trabalho corre o risco de não ser tão grandioso assim. Não falo nada apenas passeio meus olhos pelas paredes e janelas. Dou uma risada nasal assim que encontro o erro. Ela firma as mãos em volta da xícara. Retesando o lábio inferior.
- Eu já encontrei mais de vinte falhas no seu plano imbecil. – Eu digo por fim. Ela empurra o pedaço de pão pela garganta, cerrando os lábios. – Você não é forte o bastante para sair no braço com nenhum de nós, até a copeira poderia lhe dar uma surra, então utilizou a faca que Tavaras lhe deu para abrir as dobradiças da janela, como não se garante em pular do segundo andar escolheu uma janela térrea. Fez isso durante o sono de Tavaras ou, enquanto ela discutia assuntos políticos o que eu acho mais provável, já que Tavaras tem o sono de uma águia. No entanto para que Tavaras saia para então discutir esses assuntos, certamente deixaria um guarda em sua porta, guarda no qual você seduziu, assim como uma vadia qualquer. O fazendo acreditar que é uma pobre vítima e que eu sou um capitão nojento. Você só não utilizou essa escapatória, que convenhamos, não iria funcionar, porque precisa que o acampamento esteja quieto. Para assim ter uma chance de se esgueirar para fora sem ser percebida. A noite. Por isso pediu piedade a Tavaras, que foi me encontrar hoje cedo, para que ela estivesse em minha cama esta noite e você pudesse fugir. - Paro de falar, ela baixa os olhos para os próprios dedos que seguram firmemente a xícara, penso o quão quente está a água e se ela teria a capacidade de jogá-la contra mim. – Na teoria é um plano excelente! – Eu admito – E estou impressionado com que você tenha arquitetado tudo isso em tão pouco tempo. Contudo, existem falhas evidentes. O homem na sua porta tem respeito por mim e provavelmente você não o alertou sobre sua fuga. Para que Tavaras confiasse em você a ponto de lhe dar uma faca, você deve ter proposto algo em troca. Olhar de piedade não funciona muito bem com ela... – A garota me encara incrédula. Seus olhos piscam rápido de mais para que eu possa contar quantas vezes. – Sim, a preferencia de Tavaras por mulheres nunca me foi segredo. Na verdade, eu não me importo. Ajuda com os negócios e eu acho sexy. – Debocho do olhar descrente da garota. Levanto da cadeira me apoiando na mesa que nos separa. Braços em frente ao tronco, tento parecer relaxado, mas sinto o ar ferver entre nós – Vamos trabalhar com hipóteses. - Debocho - Mesmo que você conseguisse persuadir Tavaras a estar na minha cama, mesmo que conseguisse convencer a um dos meus homens a dobrar minha confiança, e como em um golpe de mestre conseguisse se esgueirar por todos os postos de vigia até chegar na cidade... a quem você pediria socorro, garotinha mestiça? – Eu a encaro, ela nada diz apenas ferve de raiva. – De todas as suas falhas a mais avassaladora foi ter acreditado que eu não notaria um plano tão amador. – Ergo-me da mesa, ajeito os fios da gola de minha camisa  e me preparo para sair. De costas, acrescento mais algumas palavras, virando o rosto apenas para lhe observar de rabo de olho – Você fez Tavaras de tonta. Não deveria ter brincado com os sentimentos dela. Fez com que ela se afeiçoa-se a você, tivesse pena de você. Conheço aquela garota e sei que hoje ela estava disposta a negociar sua liberdade, ou até mesmo um cargo que a protegesse. No entanto você só estava esperando o momento certo para apunhala-la pelas costas e voltar para a sua vidinha medíocre. – Foi minha vez de perder a paciência. Cuspo cada palavra com nojo da situação. A garota deixa a xicara na sua frente, pousa as mãos no colo e me lança um olhar perverso, analiso seu corpo pequeno e sua pele parda.
- Eu disse a ela o que ela queria ouvir! – Ela fala aos berros, levantando da cadeira e se pondo de pé apenas com a mesa e nossos mundos inteiros nos separando - Eu não tenho culpa se sua imediata não tem pulso suficiente para cuidar de uma prisioneira sem se apaixonar! Eu não a fiz de tonta, ela é tonta! Assim como o homem sem cérebro que parece uma segunda porta que você deixou aqui para me escoltar. Eu tenho uma novidade para você reizinho, eu não sou mais uma das suas vadias! – Ela faz gestos frenéticos com as mãos tentando me intimidar com os seus gritos esganiçados. Eu apenas balanço a cabeça com uma risada sarcástica, todo este espetáculo tem o efeito contrário e me dá tesão. Vou até a soleira da porta e a abro dando visão a garota. Ali parados estão o homem que a mestiça chamou de porta e Tavaras, o homem está vermelho igual as frutas matinais, enquanto Tavaras mancha seu rosto com lagrimas. As lagrimas mais parecem navalhas, cortando-a e cortando a mim. Como eu havia dito, nunca vi minha imediata chorar e não esperava que esta seria a primeira vez. Sei que não se trata de um caso de amor não correspondido, Tavaras não se apaixonaria por alguém em uma noite, aquelas lagrimas tem o cheiro de frustração. Onde uma mulher se permitiu sentir algo além da rotineira desconfiança e foi açoitada pela realidade de que sendo quem é em um mundo tão podre, nunca deveria dar-se ao luxo de confiar. Suas lagrimas são lagrimas de alguém cansada de ter que lutar todos os dias para não virar massa de manobra, não ser mais uma na conta, lagrimas de alguém que não quer se render, mas sabe que essa guerra já está perdida. A vergonha de ter sido feita de idiota, a vergonha de ter ficado contra mim e pensado que poderia ser boa, ser melhor, mesmo que isso a colocasse contra alguém muito mais de que um amigo de anos, em prol do que alguém ditou ser correto. A vergonha de ter sido tão previsível sufoca sua garganta. Ela encara a garota serrando os pulsos e desvia o rosto para evitar continuar pensando. O homem abaixa a cabeça pedindo-me um perdão silencioso. Ambos desempenhando um tolo papel, cumplices em seus segredos. Sei que o que revelamos nessa cabana ficará aqui, o guarda não ousará admitir que foi fraco e caiu nos encantos de uma jovem sedutora e inocente, muito menos desafiar Tavaras, sabendo que se o fizer, não terá próximo nascer do sol. Quanto a ela... Tavaras precisa descansar.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora