Noites em Claro

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Aquela noite me roubou todo o sono. Meus pensamentos me levaram em uma névoa de lembranças. Eu deitei de encontro aos meus lençóis limpos e pedi que o balançar do navio pudesse lavar de mim todo o peso que aquele dia me trouxera.

A negociação com Alfredo, a tempestade, a morte de Madalena, o funeral, a desconfiança sobre todos aqueles que me rodeiam.

Eu pedi para ficar sozinho. Eu quis um tempo para mim, para poder ouvir meus pensamentos gritarem sem me sentir culpado em não responder as trivialidades ocorrendo no plano real.

Minhas mulheres foram para seus aposentos, talvez durmam juntas, talvez não.

O ambiente está escuro, eu encaro as madeiras grossas do teto, escuto o ranger de Teresa, como se ela me contasse histórias de dormir. Tentando me convencer a fechar os olhos.

Quando os faço, vejo Dona.

Estamos sentados em uma mesa simples, perto da queda d'água. Linda está brincando com umas folhas, jovem de mais para que eu precise me preocupar em sair correndo atrás dela. O dia está claro, o sol belisca a pele.

Dona sorri, seus lábios fartos contornando seu rosto. Suas mãos são macias ao toque. Ela brinca com as mechas dos meus cabelos, tilintando as moedas presas a eles.

Conversamos sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo.

O canto dos pássaros nos permite esquecer que perto dali ainda existem homens me esperando para atuar como seu capitão, que ela vai chorar de novo com a minha partida, que eu vou sentir falta da minha filha, que ela vai cuidar da minha mãe, temendo que essa seja a última vez que vamos nos ver.

Seu sorriso dá lugar a um semblante de preocupação.

- O que você quer de verdade? – Ela me questiona. E eu adoraria responder, da forma mais sincera de todas, mas infelizmente eu não tenho essa resposta. Eu não sei dizer o que eu quero, com quem eu quero, ou como eu quero. Meu ideal de futuro muda o tempo todo.

Eu a amo e quero isso. Quero uma casinha no meio do mato, quero ser um pai presente, quero ver minha filha crescer e ensinar ela a nadar. Quero estar lá para ensiná-la a usar uma faca e também quero estar lá para garantir que ela nunca vai precisar saber usar.

Mas eu também quero os bailes boêmios com Berenice, os vestidos, as tabernas, os bordeis. Eu quero noites românticas e ao mesmo tempo alegres da cidade grande.

Eu também quero a ousadia de Antonieta, sempre me mostrando coisas novas. Quero essa ferocidade e delicadeza, quero essa mistura de angelical com o completo declínio dos céus.

Quero as ondas e as incertezas de Tavaras, a minha independência, as minhas aventuras, a minha liberdade para ser selvagem. Quero a minha vida nas águas.

E mais recentemente, eu também quero ensinar Maria a amar, quero ser para ela o homem que ela acredita ser impossível de existir, quero mostrar a ela que todo o vilão tem motivos para ser assim e que nem toda a donzela é indefesa. Quero ser esse príncipe encantado, que de encantado não tem nada. Quero ver ela se apaixonar, por aquilo que ela insiste em odiar.

Dona, meu amor, eu quero o nosso futuro juntos. Quero nossos planos, quero nossa filha, quero nossa casa, quero ter uma família, mas não quero ter que enterrar todas as minhas outras versões para isso.

Eu escutei esses dias, que eu ignoro todos que estão em meu caminho enquanto trilho a minha estrada em prol de minha própria felicidade.

No inicio eu achei que isso era uma crítica e que eu deveria me atentar na melhoria, para ser um bom homem. Porém, revendo essa fala agora, eu vejo que não está errado ignorar os outros enquanto trilha seu próprio caminho. Está errado alimentar sentimentos não recíprocos, está errado prejudicar a vida das pessoas de forma intencional, por puro divertimento, porém priorizar a própria felicidade não é algo que deveríamos nos envergonhar, pois caso ao contrário, sucumbiríamos a eterna dor de não sermos quem gostaríamos de ser, por medo do julgamento alheio.

Julgamento esse, que virá de qualquer jeito.

Eu lembro de naquela tarde não ter dito a Dona que eu a amava, amava nossa filha, amava tudo que havia nela, tão pouco eu disse que iria partir novamente. Eu preferi não ter que lidar com essas duas verdades tão dolorosas e coexistentes. Porque enquanto eu as ignoro, eu consigo aproveitar, o sol, os pássaros, a mesa modesta, ela...

Talvez essa seja a grande causa da minha indecisão, eu vivo por esses momentos, que dobram o véu do tempo e se enraízam em minha memória.

Talvez o que eu queira, sejam raízes de memórias.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora