Lua 49, dia 13

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Eu acordei com um gosto amargo na boca, meus ombros doíam e os músculos do meu pescoço puxavam.

As cortinas do meu quarto estavam abertas, para a luz do sol preencher o lugar. Eu conseguia ouvir Antonieta e Tavaras discutirem sentadas em minha mesa.

- Ele vai acordar daqui a pouco. Visitar Zaila é sempre uma péssima ideia. – Antonieta diz em tom cansado. Eu tento lembrar do que Zaila me disse, mas as lembranças não passam de borrões coloridos.
- Ele acredita nas palavras daquela mulher e como ele mesmo diz, um homem sem fé, não tem por quem chamar em seu leito. – Tavaras tenta mudar o tom pesado do diálogo por um tom casual.
- Ele dormiu um dia inteiro. – Antonieta reitera.
- Vai ver estava precisando descansar. – Tavaras conclui. As duas sorriem. Eu tento me virar na cama, sem sucesso. Meu corpo parece pesar mais do que eu posso carregar.
Elas percebem meus movimentos e vão até mim.

- Bom dia princesa. – Tavaras sorri ao se aproximar. Eu tento retribuir.
- Um dia inteiro, você disse? – Questiono Antonie que responde com um aceno de cabeça. – Eu devo ter muito trabalho acumulado. – Elas reviram os olhos e me ajudam a sentar na cama. Minha cabeça lateja com uma enxaqueca horrível.
- O que você foi fazer lá? – Tavaras me questiona. Eu observo minhas duas mulheres, eu poderia confiar minha vida nelas, ou assim eu sempre pensei. Nunca tive medo da morte, o que fez de mim um capitão excelente, mas eu tenho medo de ninguém conseguir fazer o meu trabalho como eu faço. Pisco algumas vezes para devolver os pensamentos a minha realidade.
- Existem mais pessoas do que imaginávamos a bordo. Ainda não sei o motivo, mas não deveríamos estar levando tantas cabeças para o último porto. – Eu digo por fim, arrancando um suspiro de Antonieta.
- Você foi até o covil de uma bruxa, bebeu um entorpecente fortíssimo, quase cai no sono dos mortos-vivos, tudo isso por que tem mais marujos do que o de costume no navio? – Antonieta me encara incrédula. – Você é inacreditável!
- Eu sei que pode soar paranoico, mas e se não for. Se realmente estiver acontecendo algo? – Eu pergunto. Tavaras começa a caminhar de um lado para o outro nos aposentos. Segurando seu queixo com a mão direita. Ela faz isso quando está tentando pensar.
- E o que uma bruxa faria para ajudar? – Antonieta questiona. Eu consigo ver seus olhos lacrimejarem. – Você precisa parar de colocar sua vida em risco. Os caminhos que você toma para evitar desastres são tão desastrosos quanto aqueles que você teme. – Nisso ela tem razão. Antonieta senta ao meu lado, seus cabelos escuros soltos em volta dos ombros, seu vestido leve contornando cada curva do seu corpo. Tavaras encara as prateleiras de alcoólicos, não diz uma palavra. Veste suas roupas habituais, calças de couro, blusa branca de pregas, colete de pele de coelho, botas e um chapéu.
- Ela me disse que eu vou morrer. – Eu digo, encarando meus pés.
- Sim, vai! Todos nós vamos. – Antonieta diz, passando de preocupada para irada. – Isso não é uma previsão, é uma observação. – Ela conclui.

- Antes de você Antonie... – Tavaras não se move, continua encarando as garrafas perfeitamente posicionadas na parede. – Fizemos um atraco no alto mar, não tínhamos certeza de que navio era, de qual nação, se era português ou espanhol, isso não importava. – Ela continua a história, minha atenção e a de Antonie estão grudadas nas palavras doces e precisas de Tavaras. – Nós sabíamos que aquela não era uma embarcação real, era algum nobre atuando por debaixo dos panos. Estávamos ficando sem água potável, graças a má armazenação dos suprimentos. Enfim, éramos jovens e destemidos. – Tavaras pega uma garrafa de Rum, serve um copo e continua. – Abordamos o navio. Eles tinham suprimentos e tentaram negociar. Eu estava achando estranho a limpeza do navio, a diplomacia dos marujos, a quietude da tripulação. Afinal, estavam sendo rendidos por piratas. – Tavaras se recosta na mesa, bebe um gole e fita o passado. – Então eu disse que queria visitar o porão. Os almofadinhas tentaram me impedir, o Duque disse que eu poderia ter tudo que eu quisesse. Algo chamava por mim no fundo daquele convés. – Tavaras me encara. – Descemos juntos. E descobrimos famílias inteiras, rendidas e silenciadas. Era um navio negreiro. – Tavaras baixa a cabeça, Antonie a encara. – Não compactuamos com a escravidão nem com o tráfego de pessoas contra a sua vontade. Abrimos fogo, foi um massacre, um ato corajoso e banhado em sangue. Libertamos as famílias, dentre elas...
- Zaila. – Antonieta presume. Tavaras concorda.
- Ela estava sentada em cima de um barril de Rum, enquanto tudo acontecia, ela brincava com uma serpente. O Duque chegou perto dela e ela apenas sorriu, o chamou de "meu rei" e disse que estava ansiosa pelo seu encontro, sussurrou algo em seu ouvido. O duque a pegou pela mão e saíram daquele porão juntos. Desde então ela navega conosco. – Tavaras termina a história e o rum em um só gole.
- O que ela te disse? – Antonieta me encara.
- "Eu preciso de você e você precisa de mim. Eu já sabia que você viria e você já sabia que me encontraria". – Eu balbuciei as palavras sussurradas a mim.
- E você realmente sabia? – Antonie pergunta, eu concordo. A verdade é que Zaila era tão familiar que parecia ser uma velha amiga, não parecia ser a primeira vez em que eu a via e traze-la comigo era a única decisão correta. Tudo, parecia estar girando para que nós dois estivéssemos juntos.
- Ela não quis desembarcar junto com as outras famílias, disse que seu lugar era aqui, no navio. Ela solicita alguns mantimentos de tempos em tempos, mas nunca sai. Apenas quando estamos em Torunta, ela desce do navio, sem que ninguém a veja, pega algumas coisas na florestas, normalmente serpentes, e volta a bordo.
- Eu conheço a Zaila, tenho medo dela. Mas não conhecia sua história. Para mim era só mais uma figura bizarra que nos acompanhava. – Antonieta dá de ombros. – Mas agora eu sei que você salvou a vida dela, então ela está em dívida com você. – Antonieta conclui. Tavaras nega com a cabeça.
- Alguns anos depois, teve um motim. Começou a se organizar, estávamos ficando sem opções e encurralados. – Tavaras me olha com lagrimas nos olhos. O duque me trouxe para cá e disse que ia ficar tudo bem. Eu o abracei, ouvimos sons horripilantes, até hoje eu não sei o que aconteceu exatamente. Metade da tripulação morreu. Quando saímos do quarto, os corpos estavam empilhados por todo o navio. Aqueles que sobreviveram balbuciavam alguma coisa sobre uma deusa, uma bruxa, uma feiticeira, um demônio. – Eu abaixo a cabeça, respiro fundo. – Se não fosse pela Zaila, estaríamos mortos.
- Ela dizimou metade da tripulação, sozinha? – Antonieta pergunta em choque. – Como? Isso é de mais até para nós. – Ela conclui.
- Eu não sei Antonie. Zaila é perigosa sim, não está bem do nosso lado, mas também não está contra nós.
- Ela acompanha a maré. – Eu digo. Antonieta me encara, depois repousa os olhos em Tavaras.
- Está certo. Eu não quero mais ouvir as muitas histórias de terror que vocês não me contaram durante todos esses anos. Eu deito com vocês dois a mais luas do que eu posso me lembrar e parece que eu sou a Maria e cheguei ontem. Eu vou me levantar e tomar meu desjejum. Indico que façam o mesmo. – Ela levanta e caminha até a porta. – Ah, e eu também sugiro que não tentem morrer no caminho para a cozinha. – Ela diz antes de abrir a fechadura, passar pela soleira e bater a porta atrás de si.

Tavaras me encara, eu devolvo o olhar.
- Quem você acha que é, dessa vez? – Ela me pergunta.
- Eu não sei.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora