Você sabe quem é, Madalena?

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Atravessamos o acampamento, Berenice e Antonieta à um passo em minha frente. Os homens me sinalizam com a cabeça, saudando-me conforme caminho. Tudo parece tranquilo. Alguns homens tiram peixes do mar, outros estão estendendo panos ao sol, o acampamento parece um pequeno vilarejo. Observo Asnos sorrir à certa distancia, um sorriso que compreende a falta de minha presença no conselho esta manhã. Como está tudo calmo por aqui, entendo que o representante Espanhol ainda não deu as caras em nosso acampamento.
Entramos em nossa carruagem e aguardamos a chegada até o centro do vilarejo. A estrada não fica muito longe, é cercada por arvores e a terra árida não combina em nada com o mar tão próximo. Alguns solavancos depois estará o vilarejo. Nego-me a chamar Concórdia de "cidade", parece errado, tendo em minha lembrança as grandes capitais, como a da Inglaterra, por exemplo.
O cocheiro desce de seu posto assim que nossa carruagem chega ao centro da cidade, o homem abre a porta ao lado de Antonieta que aplaude em aprovação. Antonieta desce da carruagem com graça, manuseando com perfeição seu vestido de rainha. Berenice desce da carruagem logo atrás, olhando para os lados para averiguar por onde começariam suas caçadas as compras. Decidiram ir até a ponta da feira ao lado oeste e atravessar quitanda por quitanda. Berenice me pediu uvas e eu concedi de bom grado. Pouco se dirigiam a mim, eu estava ali apenas para entregar moedas em troca daquilo tudo que elas apontavam, o que me fez entender que eu estava sendo castigado. Sim, castigado, bem como uma criança que desobedeceu a mãe e teve de dormir sem jantar.
Em uma quitanda bem maior que as de mais, estava à mostra tecidos de cores vibrantes, muito bonitos! Além dos padrões das camponesas que ali habitavam. "Importados" disse o senhor que os vendia. Antonieta passou seus dedos pelos tecidos e perguntou "onde ela conseguiria vestidos com aquela peça?" o senhor apontou uma quitanda próxima onde uma senhora já de idade atendia algumas moças risonhas. Minhas damas agradeceram e deram uma moeda desnecessária ao senhor. Ainda estou me perguntando o porque daquela moeda, para uma informação que ganhou pouco mais que alguns rosnados e um dedo apontador?
Concórdia faz um calor absurdo! Sempre cheia de poeira. Sua paisagem parece ter sido pintada nas cores amarelo e laranja. Essa cidade consegue fazer com que eu perca todo e qualquer humor. Isso e o fato de estar sendo feito de burro de carga pelas mulheres que na noite passada estavam cavalgando em mim.
Chegamos a quitanda sinalizada pelo senhor. Minhas mulheres vasculham as pilhas de roupas atrás do vestido ideal, eu nem ouso perguntar se eu posso esperá-las na quitanda dos vinhos, vá que resolvam me deixar sem jantar. Fico ali, vendo-as averiguar cor por cor das peças, fio a fio, renda por renda. Antonieta separou um vestido claro que eu disse ser amarelo e ela diz ser "pérola". Já Berenice escolheu um rosado que ela também disse que era pérola, para a minha surpresa, logo eu que lido tão bem com o mar, "pérola" resume todas as cores que não sabemos os nomes. Em suas mãos, no entanto, observo que levam mais dois vestidos, um azul cheio de pregas e outro mais escuro um vermelho cor de vinho fino. As encaro já pronto para dizer que elas já tem peças suficientes quando sou surpreendido pela explicação de Berenice:
- São para Maria e Tavaras. O azul vai realçar a cor da pele de Maria – Ela diz, estou chocado com a benevolência.
- O Vinho deixará transparecer a força de Tavaras – Antonieta completa. Agora estou chocado pela cor não se chamar "pérola".
Concordo com a cabeça, elas colocam os quatro vestidos dentro da sacola de palha trançada que a senhora as forneceu. Observo um vestido vermelho com detalhes em moedas de todos os países, sei que são moedas de vários locais, pois eu mesmo já tive o prazer de pegá-las nas mãos. A peça é linda! Encosto no tecido apenas para descobrir que é seda. Fico encantado com a beleza do produto, a delicadeza da costura, misturado com a simbologia de reunir um tesouro em um único ponto do mundo.
- É lindo. – Diz Berenice. – Você deveria levar para ela. – Ela sugere. Sei de quem está falando, da mesma forma com que ela sabe em quem estou pensando e o quanto ela ficaria deslumbrante vestida com aquela peça. Se é claro, ela quisesse vestir.
- Coloque este junto à soma. – Digo a senhora que tira o vestido das pregas que o seguravam junto a parede de tabuão da quitanda.
A soma deu absurdas quatrocentas moedas de ouro. Contudo pago sem contestar, aquelas moedas penduradas naquele vestido valem cada uma das em meu bolso. Continuamos caminhando e eu me animo ao avistar o final da feira, quando minhas damas resolvem parar em uma quitanda de sapatos, estou quase amaldiçoando os deuses por esse dia, quando Antonieta vem sorrindo em minha direção.
- Não lhe convidamos para que você ficasse entediado. Pode ir tomar seu vinho, lhe busco quando decidirmos tudo que iremos levar. – Eu sorrio de volta. Levanto do encosto que eu já tinha preparado para ficar mais duas horas parado enquanto elas experimentavam sapatos e me dirijo até a quitanda dos vinhos.
Está rodeada de homens bêbados de mais para terem uma conversa agradável. Peço uma caneca de vinho doce, sou atendido prontamente.
Vejo a garota, filha do mercador atender os homens bêbados que sustentam o negócio do seu pai. Vejo sua expressão cansada enquanto recolhe as canecas vazias e repõe canecas cheias até o gargalo. Uma substituição mecânica. Vidinha entediante, imagino. Os homens elogiam suas curvas o que me chama a atenção para as mesmas, ela possui um corpo bonito, não muito volumoso, mas bonito. Ela se contem, completamente desonrada pelas barbáries que os homens profetam. Peço permissão a seu pai para cortejá-la, como um homem sucinto ele não nega. Colocando a filha a minha disposição. Ela se aproxima de mim com os olhos baixos, os homens ao redor esbravejam o quanto "chegaram primeiro" e eu apenas ignoro. Ela senta a minha frente, separados por uma bancada de madeira suja com os restos de bebida de algum outro homem que também deve ter tentado a sorte por aqui.
- Qual é o seu nome? – Pergunto. Ela me olha nos olhos, reconhecendo meu semblante, seus olhos escurecem com um certo receio.
- Madalena – Ela responde. Gosto do som do seu nome.
- Sabe quem foi Madalena? – Pergunto. Ela concorda com a cabeça. –Madalena, você sabe quem sou eu? – Questiono, novamente ela concorda com a cabeça. Sem emitir um único som, apenas se mexe de vagar, como se quisesse desaparecer. – Sabe quem é você? – Questiono por fim. Ela demora um tempo para assimilar a pergunta, talvez ponderando a resposta. Ainda de cabeça baixa, concorda. – Quer mudar esta sua vida? – Ela me encara nos olhos. Eu bebo quase toda a caneca de meu vinho enquanto reparo naquela mulher. Ela, sem dizer nenhuma palavra. – Se continuar aqui – Continuo – Digo, aqui – Aponto para o seu redor - ajudando seu pai... continuarão recebendo pouco mais que nada, você vai continuar sendo desrespeitada por estes homens, tendo que acordar todos os malditos dias sendo exposta a uma enxurrada de agressões, acabará tendo que casar com um destes patifes e sabe-se lá como vão lhe tratar depois. Que tipo de vida quer dar aos seus filhos? – Explico, bebendo um pouco mais de meu vinho. Ela me observa atenta sem desgrudar seus olhos dos meus. Diminuo um pouco do ritmo de minha voz, para que ela entenda que não estou a julgando e muito menos tenho compaixão por sua história de vida. – Ou você pode vir comigo, a essa altura suponho que já saiba como funciona o meu negócio? Digo, como minhas meninas são tratadas... você receberá um dinheiro bom, que poderá facilmente sustentar você e sua família. -Vejo que minha conversa a intriga, a menina mantém seus olhos vidrados enquanto pronuncio cada palavra, sendo assim, continuo - Será vendida para uma das casas e será levada para o país que lhe derem, contudo, será rica e bela. Poderá visitar seus familiares daqui algum tempo, poderá sair deste chiqueiro e ter um futuro no qual poderá sonhar. – Ela pondera. – Se você me conhece mesmo, sabe que não ofereço esta oportunidade para todas as mulheres que cruzam meu caminho. - Finalizo sem rodeios, colocando minha caneca vazia de lado.
- Mas quanto a minha honra? – Ela me interrompe. – E eu vi o que você fez com aquela garota aquele dia. Serei tratada daquela forma por um dos seus capangas?! – Ela questiona, praticamente certa de minha selvageria. Reteso minha mandíbula.
- Que tipo de honra a filha de um mercador de vinho possui? - Estreito os olhos, sei que minhas palavras pareceram agulhas, mas foram necessárias. - Se você continua com sua virgindade eu lhe digo que isso pode valer alguma coisa. – A observo encolher, sei que minhas palavras ardem com sua realidade e isso deve machucar. – Mas se você não a possui mais, sinto que não tem muito valor por aqui, e quanto a garota que você viu aquele dia... ela foi muito desrespeitosa! Coisa que você Madalena não está sendo, então não precisa se preocupar. Valorizo garotas boazinhas.  – Ela ergue os olhos do balcão e os pousa novamente em mim - A menina que você viu aquele dia, já me pediu desculpas e está sendo muito bem tratada comigo. Posso lhe oferecer a mesma rota de fuga. – Ela concorda, baixando novamente a cabeça. Bato na mesa. Chamando a atenção do pai da moça e dono da quitanda de vinhos.
- Senhor, quanto seria o valor de sua filha? – Os homens berram ao redor. Ignoro-os. O homem olha de mim para ela, acredito que fazendo um calculo mental. – Eu dispenso o dote, quero apenas ela. Diga-me o valor para que eu a leve comigo. – O homem abaixa o rosto. Vejo as lagrimas cortarem seu rosto, velho, manchado e judiado. Suas mãos apertam em volta do corpo pequeno, o avental sujo em sua frente e uma eternidade de dúvidas nos separando.
- Madalena é meu tesouro! – Ele diz em forma de suplica. Meu coração aperta, não tenho ideia de como deve ser para um pai dar adeus a sua única filha... na verdade,  tenho sim, e sei que pode ser uma dor suportável. Se for para o bem da criança.
- Ela lhe renderá muito mais ouro meu senhor! – Confirmo – E convenhamos, ela não está sendo levada a uma masmorra, virá lhe visitar em breve. – O homem me convida para entrar e conversarmos a sós, longe dos berros dos homens bêbados e furiosos em nossa volta. Ergo-me de meu assento e passo pelos panos que separam a área reservada da taberna. O lugar é pequeno, bagunçado e pouco arejado. Sento-me em uma das poltronas à disposição.

Quanto valeria Madalena?

O senhor nos serve um vinho doce muito bom e acerta os detalhes do contrato de venda de sua filha. Escuto o homem suplicar para que eu tome conta de Madalena e que não lhe traga de volta apenas um "corpo". "Eu quero minha filha viva! Por favor senhor! Ela é uma boa garota! Ela tem sonhos". Eu garanto o bem estar da jovem assim como a sua segurança, não minto para o senhor, digo que sua filha será de muitos homens, mas terá mais chances de participar de um harém de um rei ou como dama de companhia de uma duquesa se estiver comigo, do que continuando em sua estalagem. O senhor concorda, chora e abraça a filha. Ele pede perdão à ela e é absolvido da culpa. Já perdi as contas de quantas vezes eu vi esta cena, de quantas "Madalenas" eu já tirei de casa para suprir uma divida ou para lhes conceder alguma oportunidade de viver melhor. Quantas vidas eu já salvei e quantas eu já arruinei. Hoje já não consigo sentir pena, ou comoção com estas despedidas. Para mim, cenas como essa são rotineiras. As garotas que levo sempre acabam voltando para suas casas repletas de joias, com vestidos caros, cabelos escovados e sorridentes, felizes, com filhos fortes, com casamentos promissores. Isso faz com que seu trabalho seja mais leve, uma realidade menos cruel do que ser mulher de um bêbado e ter de esfregar o chão sujo de uma taberna imunda em uma cidadezinha precária todos os dias pelo resto de sua eternidade.

Meu trabalho oportuniza sonhos. Essa é uma mentira que eu gosto de acreditar. 


Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora