Amuleto

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Eu já estou de banho tomado e vestido. Já caminhei pelo convés, já observei os meninos que estão lidando com o timão. Já reforcei os nós das cordas que seguram as velas, que por sua vez estavam frouxas. Já gritei com Asnos, uma vida de pirata. Mas os pensamentos da banheira não saem da minha cabeça. Os pensamentos sobre o complexo de sol, não os pecaminosos com as seis mulheres na mesa do desjejum.

Eu caminhei até meu quarto, revirei a papelada, li os relatórios e agora estou em pé, atrás da mesa, revendo as rotas e observando as assinaturas de embarque, para ter certeza de quantas pessoas estão no navio. Em minha mão esquerda eu seguro umas três doses de rum, na direita, eu faço cálculos com a minha pena.

Tavaras entra no quarto, me encara curiosa. Eu retribuo o olhar.


- Vai juntar-se a nós para a refeição? – Ela questiona. Eu aceno com a cabeça. Ela passa pela porta, atrás dela está Maria.
- Onde estão as outras meninas? – Pergunto. Meu olhar vasculha o quarto perfeitamente organizado, sem as camas improvisadas da noite anterior.
- Estão na cozinha exigindo bacalhau para a refeição. – Tavaras pontua sorrindo. Sou obrigada a sorrir também. – O que está fazendo? – Ela estica o olhar para os papeis em minha frente. Eu a olho e depois deito meu olhar para Maria. Ela se encolhe atrás de Tavaras.
- Resolveram voltar para os seus devidos quartos? – Eu troco de assunto, Tavaras ainda encara os papeis, compreendendo minhas dúvidas.
- Sim. Nossas mulheres vão dormir em seus alojamentos. – Ela fala curiosa, mas entendendo o recado.
- Ótimo. Podem me esperar para a refeição. Eu vou visitar a Zaila. – Digo por fim. Tavaras arregala os olhos.
- Quer companhia? – Tavaras se preocupa de mais.
- Quem é Zaila? – Maria pergunta. Eu a encaro sem dizer uma palavra. – Desculpa meu duque, mas se não pode confiar em mim para uma conversa trivial, não deveria me deixar entre as suas pernas. – Ela diz, confiante para quem tem a metade da minha altura. Eu ergo uma sobrancelha e a respondo com uma risada nasal.
- Já consegue acertar um alvo imóvel Maria? – Eu a provoco. Ela bufa e revira os olhos.
- É uma bruxa. – Tavaras responde. Roubando de volta a atenção de Maria.
- Você carrega uma bruxa no navio? – Maria pergunta.
- Porque amor? Você tem medo? – Eu questiono. Os olhos de Maria estavam arregalados.
- Não só uma bruxa, ele também carrega um padre, um missionário, uma sacerdotisa, um indígena... – Tavaras revira os olhos. – São seus amuletos da sorte.
- Você tem que parar de possuir pessoas! – Maria me alfineta antes de cruzar os braços.
- Obrigada pela visita meninas, agora se vocês me derem licença, eu preciso visitar uma mulher geniosa...

Eu caminho até a parte mais profunda do navio. Abaixo da dispensa de mantimentos e armas. Um corredor úmido, mal cheiroso e cheio de fumaça. Um covil. Um esconderijo, um refúgio.

Abro a porta. Ela range. Ali embaixo é mal iluminado, alguns lampiões balançam a luz que projetam formas estranhas na parede. Tem algumas serpentes vivas penduradas no teto. Uma coruja irritadiça anuncia a minha chegada.

- Eu estava me perguntando, quanto tempo, nosso rei iria demorar para vir me ver. – Uma voz doce preenche o ambiente. Eu sinto um arrepio na espinha. O chacoalhar das suas contas denuncia sua proximidade. Eu me viro nos calcanhares, sem movimentos bruscos. Zaila está vestindo uma saia de pontas de tecidos leves e escuros. Seus cabelos estão trançados em vários nós. Seu corpo está pintado com escrituras de sua língua natal, uma tinta branca que contrasta com sua pele escura. Seus colares presos no pescoço balançam com o seu gingado. Seus peitos formosos expostos, um convite, um aviso.
- Eu nunca me surpreendo com você Zaila. – Eu digo, em tom cortês.
- Guarde seu charme pirata, para as donzelas em apuros que você sequestra, digo, salva. – Ela zomba. Chegando perto demais. Seus lábios quase encostam aos meus. Sinto o cheiro da fumaça de seu cachimbo. Ela pisca os olhos, duas bolhas verdes que guardam todos os segredos de todas as florestas do mundo.
- Quem são? Dessa vez? – Eu pergunto. Sem conseguir tirar os olhos dos seus lábios. Seu corpo possui um magnetismo irresistível para qualquer um. Entrar no covil de Zaila e sair vivo é uma tarefa perigosa.
- Os homens que querem te tirar do trono? – Ela pergunta já sabendo minha resposta. Ela sorri, um sorriso diabólico que contorna cada dente de sua boca, ela sai dançando pelo interior do quarto. Acariciando as serpentes, que respondem bem ao toque. – Sabe, quando um garotinho me convidou para fazer parte dessa tripulação, ele disse que nunca havia visto uma mulher tão linda e que falasse com as cobras. Ele estava encantado com o mundo e as muitas possibilidades que os mares poderiam lhe oferecer. Lá, perdida no tempo, eu disse a ele que o garotinho seria um poderoso rei. Então ele me disse que não queria ser um, eu respondi "mas porque não haveria de querer ser, se há tanto potencial governante em você?" ele apenas disse que o trono era uma posição que ele não almejava. Eu sentei nesse navio e esperei, pelo dia que o mesmo garotinho, passaria pela porta, já crescido, com medo de perder a cora que ele não queria ter.

Eu escuto cada palavra, me viro nos calcanhares e caminho até a mesa central, abarrotada de ervas, misturas, uns pós coloridos e mais cobras. Pego uma xícara e sirvo um liquido engarrafado.

- Espero que não vá querer beber isso aí. – Zaila diz, sem colocar os olhos em mim. Eu paro a xícara a centímetros da boca.
- O que é isso? – Questiono.
- Veneno. – Ela responde, pousando as bolhas verdes em mim.
- Porque você... Enfim. – Jogo o líquido de volta a garrafa.
- Pelo mesmo motivo que você leva uma pistola na cintura. – Ela responde, apontando para as minhas calças. Eu concordo.
- Tem algo para beber que não me mate? – Pergunto a ela. Zaila caminha até a estante cheia de potes de vidro com líquidos visguentos dentro. Pega dois copos de tamanhos diferentes e serve o que parece ser um vinho rosado. Me alcança um copo, eu bebo. É terrível, mas dá uma sensação divertida. Entrego o copo de volta, ela o enche novamente. Eu bebo, as luzes passam a ficar coloridas. Os vinhos de Zaila são sempre os melhores.
- Não deve beber mais de dois copos. – Ela reitera.
- Porque não? – Pergunto.
- Porque é meu. – Ela responde. Tampando a garrafa com a rolha e devolvendo-a para a estante. Eu sorrio. Zaila tira a cobra que estava enrolada em cima da cadeira mais próxima a mim e me convida para sentar. Eu obedeço. Ela contorna a mesa e senta em minha frente. – Diga meu duque, quais são seus medos? – O navio começa a balançar de forma diferente, me sinto sonolento, calmo, risonho. O vinho provavelmente foi feito com algo a mais do que uvas.
- Eu acho que tem algo acontecendo que eu não estou sabendo. – Eu digo, sentindo as palavras adormecerem em meus lábios.
- Criança... – Zaila começa, sem tirar os olhos de mim. Suas mãos em posição de reza em frente aos lábios. – Sempre terá algo que você não sabe acontecendo. Os deuses, que são deuses, tem mais olhos que nós, justamente porque só dois, não são capazes de ver tudo. – Eu não consigo entender se ela está falando dos meus dois olhos, ou se ela está falando de dois pares de olhos, sendo uma alusão a mim e a Tavaras.
- Quem está tramando dessa vez? Me ajuda Zaila, você já preveniu motins antes, pode fazer de novo. – Eu digo, me escorando na cadeira, cada palavra sai com dificuldade.
- Existem ameaças, vindo de todos os lados, diferentes motivações, diferentes formas de prevenir, nunca de evitar. Me diga meu rei, o que você faria, se soubesse que virá uma guerra? Você lutaria ou fugiria? Ambas as escolhas teriam perdas enormes.
- Eu morreria? – Eu pergunto, tentando desvendar os enigmas. Ela concorda sorrindo. – Então eu lutaria e morreria com honra. – Eu digo, jogando a cabeça para trás, tentando manter os olhos abertos.
- O futuro sempre pode ser evitado. – Ela diz, deitando a cabeça para o lado. – Mas nesse caso, evitar perder hoje, para perder amanhã, é igualmente inútil. Sabe porque você não se assusta mais com o meu covil de cobras garotinho? – Eu permaneço em silencio, as palavras de Zaila soam como uma canção de ninar. – Porque você está morando com cobras há muito tempo. Já se acostumou.

Escuto uma batida na porta. Zaila olha furiosa em direção ao som.

- Zaila, abre essa porta. – Escuto Tavaras. Zaila xinga, se ergue na cadeira e caminha lentamente em direção a porta. – Zaila, abre ou eu vou fazer um rombo tão grande que você nunca mais vai conseguir trocar de roupa em paz. – Zaila destranca a porta olhando azeda para Tavaras, que por sua vez devolve o olhar arrogante.
- Que roupas Tavaras? Esse é um costume do seu povo. – Zaila abre espaço para Tavaras caminhar em minha direção. Eu vejo apenas alguns borrões.
- O que você fez com ele? – Tavaras pergunta, colocando a mão em minha testa. – Ele mal consegue deixar os olhos abertos e está suando como um porco! – Ela reclama, eu resmungo e Zaila apenas sorri.
- Ele está bem, só bebeu demais. – Zaila da de ombros. Caminha até nós, contorna Tavaras enquanto ela me apoia em seu ombro. – Quer tirar sua sorte Tavaras? – Zaila questiona, pegando cartas pintadas a mão de sua gaveta. Tavaras revira os olhos. – Talvez a sua sorte seja melhor do que a do duque, futura capitã. – Zaila sorri, eu franzo o senho, tentando entender o que está acontecendo. Tavaras me encara incrédula, e depois olha para Zaila, curiosa e evidentemente irritada.
- Guarde suas previsões e truques para o circo Zaila! Por mim você já teria ido para a fogueira! – Tavaras berra com lagrimas nos olhos, me levando para fora dali. Chuta uma cobra no caminho enquanto eu me questiono com tudo que eu ouvi. Zaila por sua vez mantém a postura imóvel.
- Quanto você criança, seu futuro não é mais puro do que aqueles que você tanto odeia, a mesma escuridão que você deseja, recairá sobre você. – Zaila diz, sem tirar os olhos da mesa, eu não entendo mais nada do que está acontecendo, apenas sigo os passos de Tavaras. Quando passamos pela porta, vejo Maria, escondida fora da visão de Zaila, o que não a manteve longe de suas premonições. Maria fita o horizonte, imóvel. Tavaras pede ajuda para ela, eu não sinto minhas pernas, nem meus braços, e em questão de instantes, eu não sinto mais nada.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora