Lua 48, dia 7

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Acordei com o cheiro de pão fresco e chá sendo fervido. Abro os olhos e me deparo com Antonieta sorrindo.
- Bom dia meu duque! – Ela diz, sua voz mais parece um suspiro, doce, gentil. Vejo-a sorrir enquanto ainda sonolento evito abrir os olhos por completo. É inevitável sorrir de volta. Antonieta tem uma beleza diferente de tudo que eu já vi. Ela é delicada em cada detalhe. Parece ter sido pintada com o pincel de sardas mais macias que já pudera existir.
- Bom dia minha princesa! – Eu digo, observo a luz que entra pela janela e me pergunto que altura do dia estamos? Ergo-me da cama, pondo-me sentado entre os lençóis. Antonieta parece notar minha apreensão pela hora, provavelmente fazendo aquelas observações que nenhuma mulher gosta de fazer.
- Ainda é cedo! – Ela diz de imediato - Bere foi fazer nosso desjejum e Tavaras foi averiguar se os conselheiros precisam da sua presença no dia de hoje. – Ela faz beicinho. Eu ergo a sobrancelha esperando o pedido que sei que irá fazer. – Queremos sua companhia! – Ela fala por fim. Eu reviro os olhos, alargando meu sorriso. É engenhoso ser Antonieta a fazer o pedido, a sua falsa inocência faz com que sempre consiga o que quer– Queremos ir ao povoado de Concórdia comprar vestidos e talvez alguns sapatos. – Ela começa a contar as peças nos dedos, eu a olho com deboche, sei que possuem baús e mais baús de roupas, tecidos caros, sapatos pavorosos cheios de babado, mas que elas gostam então lhes dou mesmo assim. Poderiam vestir Concórdia inteira se quisessem, por que precisariam de mais? – Talvez algumas camisolas mais rendadas, ou mais transparentes – Ela diz, mudando o tom inocente para uma língua sedutora, pronta para me convencer, minha cara de escárnio desmancha, sou tomado por puro desejo. - Precisamos de você lá para dizer em quais ficamos mais belas. – Ela me sacode com seus bracinhos, usando nem a metade da força que eu sei que ela tem - Vamos! A gente pode levar seu bichinho e dar um jeito naquela cara feia dela. – Ela insiste, eu a censuro com o olhar, cortando seu ciúmes bobo. Sei que Berenice e ela tratarão a mestiça com certo receio por um tempo. Na verdade "receio" não é bem a palavra certa para definir o que estas duas podem fazer. Minhas mulheres podem ser bem perversas quando querem.
Concordo com a cabeça para evitar que ela prolongue os pedidos, bem como que ela pare de me sacudir. Ela bate palminhas, levantando da cama e começando a se apressar para sair. Antes de passar pela soleira da porta, recua, cerra os olhos e me encara – Você ainda não nos explicou essa história de gastar seiscentas moedas de ouro com uma QUINTA garota. – Ela fala a palavra "seiscentas" e "quinta" com bastante entonação, usando todo o deboche que consegue reunir, degustando as palavras para dar-lhes o seu melhor tom de reprovação. Eu sorrio, cubro meus olhos com as mãos evitando esta discussão e volto a atirar-me na cama. Ela sorri, saboreando sua vitória, então sai faceira porta a fora.

Desço as escadarias depois de um banho quente, o cheiro do desjejum me guia os passos até a sala principal da cabana de cravos. Sou tomado de surpresa pela visão de uma mesa acompanhada de quatro mulheres. Três delas sorriem abertamente, já uma está mais isolada, de canto, com sorrisinhos fracos. Nenhum direcionado a mim. As minhas três mulheres conversam alto, gesticulam, brincam umas com as outras. Perfeitas damas, mesmo quando não se tem ninguém as observando... O que não é bem verdade, já que estou ali, saboreando suas belezas. Quando percebem minha presença, Berenice levanta de seu assento, caminha até a ponta da mesa e puxa a cadeira de encosto alto, para que eu possa me sentar. A mesa está repleta com uma ceia formidável, pães doces, queijos, leite, chás, roscas de polvilho... Sento-me a mesa e sou recebido por risinhos, exceto pela minha mais nova integrante que baixa a cabeça para as mãos que tem em seu colo, espero que desta vez não tenha nenhuma faca com ela.
- Estávamos falando sobre como Maria precisa começar a fazer aulas de facas com Tavaras. – Berenice dispara antes mesmo que eu consiga servir uma única xícara de chá. Eu a olho frisando o cenho. – Todas nós sabemos lidar com as facas! Sempre carregamos uma em nossa cinta, como o senhor nos orientou. Seria imprudente deixar uma faca com ela sem que ela soubesse como manuseá-la. – Berenice termina a sua frase e mordisca seu pão doce para disfarçar o sorriso maléfico em seus lábios. Sei que está fazendo mensura ao fato de que a mestiça não soube o que fazer com a faca aquela manhã na Cabana de Pinos, sinto-me mal por ter feito a mesma piada mental, segundos antes. Contudo não fiz isso em voz alta o que me garante mais pontos do que Berenice, e até onde sei, a mestiça não sabe ler mentes então não pode estar ofendida por isso. Mais tarde, quando eu e Berenice estivermos a sós, irei censurá-la por ser tão cruel.
- Ela realmente precisa de aulas! É capaz de cortar as próprias coxas se simplesmente lhe darmos uma cinta com uma faca pendurada. Você usa cinta, não usa Maria? – Foi a vez de Antonieta ser cruel. Berenice começa a rir descaradamente. O semblante da mestiça começa a tomar a cor das maçãs postas no cesto em sua frente. Ela nada fala, continua de cabeça baixa, mas sei que está sendo possuída pela raiva crescente. Está visivelmente em desvantagem sentada ali. Mesmo se fosse apenas uma de minhas damas e não as três juntas, poderiam facilmente quebrar cada uma de suas costelas.
- Já chega! – Tavaras diz, em tom alto suficiente para encerrar os risos das outras duas. – As aulas de Maria começarão assim que o Duque decidir qual será a melhor hora, até lá, vamos evitar o assunto sobre facas. – Sei que Tavaras está engolido seu orgulho, provavelmente não contou as garotas a forma como foi enganada pela mestiça nem o quanto isso quase custou sua lealdade a mim. Até o momento nem sei como elas sabem do assunto referente a faca. Suspiro, totalmente exausto por ter quatro mulheres exigentes em minha volta e até o momento, não ter conseguido tomar um gole de chá.
- Vamos à feira hoje. – Antonieta dispara animadíssima, como se em um minuto atrás não estivesse tomando esporro de Tavaras. A mestiça me encara horrorizada e só então entendo o plano ardiloso de Antonieta, olho-a e ela esconde o sorriso tenebroso atrás de sua xícara de chá pintada a mão. Claro que ela não precisa de roupas novas, ela queria desfilar pela feira da cidade a fim de humilhar ainda mais a mestiça, que infelizmente, tiramos de lá. Fecho a cara, ela desvia o olhar comemorando cheia de risinhos trocados com Berenice, até mesmo Tavaras teve que rir da minha ingenuidade.
- Eu posso ficar? – Maria pergunta, sua voz vacila. – por favor? – Ela complementa.
- É claro que não Maria! Francamente, de nós três você é a que mais precisa de joias, sapatos, roupas e se possível de uma cara nova.
- Berenice! – Eu trovejo. Já cheio dos insultos disfarçados. Ela encolhe. Olho para Maria, que eu nem sei se esse é mesmo o seu nome, concordo lentamente com um aceno de cabeça, dando permissão para ficar no acampamento. Encaro Tavaras, que mesmo não adorando fazer compras, tudo que não queria era ter que ficar um segundo a mais sozinha com a mestiça. Convenhamos, ela não é uma dama de companhia e nem uma servente, não tem porque fazer papel de mãe. Tavaras sustenta o olhar grudado ao meu por tempo suficiente e depois o desvia, trincando a mandíbula ao encarar o assoalho. – Vamos nós três. – Digo por fim. Berenice e Antonieta parecem ter desanimado um pouco, mas logo a animação volta aos seus rostos. – Voltaremos tarde. – Digo me dirigindo a Tavaras que revira os olhos. – Você toma conta da embarcação para mim? Não precisa ficar restrita a Cabana, Maria não fará nada imprudente. – Desvio o olhar para Maria que concorda. Uma mistura de gratidão e alívio abate seu rosto.
Terminamos nosso desjejum, Berenice e Antonieta estão escolhendo a melhor roupa para "passear" de dentro de um dos seus baús. Tavaras saiu novamente da cabana para gritar ordens aos marujos. A ideia de lhe atribuir menos trabalho nunca funciona! Eu não sei a quem eu tento enganar, Tavaras lidera esse negócio muito melhor do que eu. Quanto a mim? estou acompanhando Maria até os seus aposentos.

Maré BaixaOnde histórias criam vida. Descubra agora