A primeira coisa que fiz ao chegar na empresa no dia seguinte, foi ir ao setor de recursos humanos, onde passei algum tempo lendo e assinando alguns papéis. Muitos funcionários, alguns que eu não conhecia e algumas mulheres queeu já tinha visto por ali, me olhavam como se eu fosse algum bicho exótico, talvez, me julgando pelas regalias que a filha de Alejandro Cabello deveria ter. Mal sabiam que meu pai sempre foi muito enfático em relação trabalho e estudos e eu nunca pensei em ir contra isso. Sabia que ele havia depositado em mim toda a sua confiança para prosseguir com seu legado, mas tinha certeza de que se eu tivesse ido para outro lado, nosso relacionamento seria o mesmo. Por sorte, eu sempre me interessei pelo mundo corporativo e estava mais do que satisfeita em trabalhar ali. Com o tempo, todos perceberiam que eu era apenas mais uma funcionária e aqueles olhares questionadores iriam diminuir. Quem sabe até conseguisse fazer algumas amizades, o que seria providencial, uma vez que Rafaela estava bastante sumida, curtindo sua paixão por Davi.
— Prontinho, Camila, tudo certo — Carolina afirmou, me oferecendo um envelope pardo contendo as cópias dos documentos que tinha acabado de assinar. Eu a agradeci com simpatia e voltei para a minha sala. Passei toda a manhã lendo relatórios em meu escritório, mas quando tinha dúvida sobre alguma coisa, ia à mesa de Sandra para que ela me esclarecesse. Sempre que saía, ficava um pouco apreensiva, com receio de dar de cara com Shawn, mas não vi sequer sua sombra. No final da manhã, no entanto, escutei sua voz grave do outro lado da porta; ele parecia estar falando com alguém ao telefone. Aquilo me distraiu por alguns segundos, mas logo voltei a focar no meu trabalho. Perto do meio dia, mamãe apareceu. Ela ligou mais cedo dizendo que queria almoçar comigo e papai, desligando logo em seguida, sem ao menos esperar resposta e me fazendo rir. Dei graças a Deus por Shawn não ter nos visto saindo ou, provavelmente, teria sido convidado a se juntar a nós. Escolhemos uma churrascaria perto da empresa e meu pai não poupou elogios aos meus dois primeiros dias de trabalho. Mamãe ficou feliz em saber que tudo estava indo tão bem, mas notei que ela ficara inquieta durante nossa refeição.
— Desembuche, dona Elise —provoquei, enquanto degustava minha sobremesa, aproveitando que papai tinha se afastado para ir falar com dois conhecidos. Ela se sentou na cadeira ao meu lado para que pudesse falar baixo.
— Parece que os pais da Fernanda descobriram sobre o falso noivado. Congelei a colher a caminho da boca. Parecia que quanto mais eu tentava me distanciar de toda essa história, mais as pessoas a minha volta me mantinham informada. Podia até apostar que minha mãe inventou esse almoço só para me deixar a par do que estava acontecendo. Fechei a cara, mas ela fingiu que não viu e continuou: — A mãe dela leu as mensagens que Fernanda e Shawn trocaram e descobriu que a briga aconteceu porque ela mentiu na noite de Natal. O problema é que, em vez de enxergarem o erro da filha, resolveram culpar Shawn pelo acidente e o proibiram de visitá-la.
— Nossa! Imagino que ele deve estar péssimo. Os pais de Fernanda eram médicos e, com certeza, conseguiriam mexer os pauzinhos para que ele não tivesse acesso ao quarto dela.
— Está mesmo. Tanto que não foi trabalhar pela manhã e Karen está vindo da fazenda para passar alguns dias com ele.
— Nem sei o que dizer.
— Eu entendo que o momento seja delicado, mas eles estão sendo injustos. Shawn pode não ter lidado muito bem com essa situação, mas sempre se preocupou com a Fernanda, mesmo ela tornando o relacionamento deles quase impossível. A mulher era tão dependente, que inventou um noivado para ver se o segurava. Mas a família jamais vai admitir que a errada em tudo isso é ela — mamãe argumentou.
— Tomara que eles se resolvam logo — falei como se ele fosse um parente distante e sem importância na minha vida, apesar de o meu coração estar retumbando no peito.
— Odeio quando você encarna esse personagem de mulher superior e bem resolvida — ela rebateu e eu tive que rir.
— Mãe, você conhece o Shawn. Mesmo que não tenha concordado com esse noivado, enquanto a Fernanda estiver em coma, ele vai continuar se sentindo culpado. Na verdade, eu não duvido nada que continue se sentindo assim mesmo depois que ela acordar e acabe tornando esse noivado real apenas para compensá-la. Acha mesmo que preciso me envolver nesse tipo de problema? — falei tudo aquilo com pesar, porque doía pensar naquela possibilidade. Mas eu tinha que ser
sensata, conhecia Shawn e seu senso de justiça e sabia como sua cabeça funcionava.
— Você está certa sobre Shawn, mas acho que não deve se fechar a tudo isso. Não se mostre tão indiferente e intransigente, já que a culpa não foi dele.
— Tudo bem, mamãe, vou tentar. — Ofereci o melhor sorriso que consegui, mas sei que ela enxergou que por trás da minha aparente indiferença, havia muita dor, pois pegou minha mão e a apertou, transmitindo-me força. Depois do almoço, ela foi para casa e eu voltei com meu pai para o escritório. Mais uma vez, os funcionários ficaram nos olhando, um pouco mais comedidos, devido à presença do chefe ao meu lado, mas ainda havia um certo ar de desconfiança.
— O que será que eles ficam pensando? — perguntei a ele enquanto esperávamos o elevador chegar.
— No quanto você ganha e se vale o que ganha — ele rebateu, em tom divertido e nós rimos. Papai devia ter razão, quantas pessoas estavam se matando para pagar suas faculdades em busca de oportunidades na empresa e, de repente, a filha do dono ocupa uma vaga na presidência. Por outro lado, ficava imaginando o que eles achavam que seria o certo. Eu deveria procurar emprego em outro lugar, apenas para não ser acusada de nepotismo e favorecimento ou talvez assumir um cargo inferior, mesmo tendo estudado muito para estar apta a ocupar o cargo que me foi dado? Tentei não me apegar àquelas conjecturas, afinal de contas, eu não tinha culpa de ter nascido filha de Alejandro Cabello e não me deixaria ser intimidada por ninguém. Seguimos para as nossas salas e ainda estava escovando os dentes quando, minutos depois, Sandra avisou que o dono do terreno que tínhamos interesse em comprar já estava esperando na sala de reuniões. Terminei minha higiene bucal, reapliquei o batom, passei uma escova pelos fios pretos que desciam lisos pelas costas e alinhei minha roupa. Naquele dia, eu estava usando uma saia mídi preta e uma blusa de seda da mesma cor. Sentia-me totalmente condizente com a postura que deveria apresentar no meu local de trabalho. Ao passar por Sandra, sorri quando ela me desejou boa sorte e segui para a sala de reuniões. Não sabia bem o que fazer naquela minha primeira interação direta com um cliente, então apenas seguiria o líder. Quando entrei, a primeira pessoa que avistei foi Shawn. Ele estava ao lado do meu pai, conversando com três homens.
— Ah, senhores, esta é Camila Cabello, nossa gerente de compras — meu pai disse, orgulhoso, e os três desconhecidos que estavam de costas para a porta se viraram com um sorriso contido no rosto. Shawn, por sua vez, permaneceu sério, mas depois do que minha mãe revelou, eu não esperava que ele estivesse sorrindo. Cumprimentei a todos e meu pai deu início à reunião. Devido a um imprevisto, o dono das terras não pôde comparecer, então enviou um procurador em seu nome, além dos dois advogados que seriam responsáveis pela transação. Plantas e fotos do local nos foram entregues para que pudéssemos apreciar os detalhes. O enorme terreno ficava em uma área bem à margem do perímetro urbano e se embrenhava mata adentro, o que para um condomínio de sítios, seria ótimo. No entanto, notei que havia uma faixa de vegetação separando-o de um pequeno bairro e aquilo me intrigou.
— Essa vegetação faz parte da reserva ambiental ou pode ser retirada posteriormente? — perguntei e os três homens se olharam, demorando um pouco
para responder.
— Eu acredito que faça parte da reserva ambiental, mas realmente não tenho certeza, preciso verificar — um dos advogados respondeu e voltei a analisar a planta.
— Acho que não será bom para este empreendimento em especial, se
essa área puder ser desmatada no futuro. As pessoas que vão comprar esses terrenos, querem a ilusão de estarem vivendo longe da cidade e não será agradável acordar e dar de cara com um bairro do outro lado do muro — argumentei e ganhei um olhar aprovador do meu pai. Shawn também gostou da minha colocação, pois estava nítido em sua expressão.
— Mesmo que isto aconteça futuramente, apenas dois terrenos seriam afetados, todo o resto está rodeado de uma área verde protegida por leis ambientais — o procurador argumentou.
— Bom, os valores dos terrenos estão realmente atraentes, mas precisamos da certeza de que a vegetação será mantida, a não ser que a Cabello mude de ideia e queira fazer um condomínio residencial normal — dei minha opinião, mas joguei a decisão final para meu pai.
— A Camila está certa, precisamos que verifiquem isso. De qualquer forma, marcaremos para fazer algumas visitas no local a fim de ver se vale a pena fechar negócio. Os advogados murcharam instantaneamente quando perceberam que não seria tão fácil vender aquela grande quantidade de terra, mas viram que não podiam fazer nada, então prometeram analisar a questão da vegetação junto aos órgãos competentes e ficamos de marcar outra reunião.
— Muito bem, filha, é assim que se faz bons negócios — papai elogiou assim que nós três ficamos a sós.
— Graças aos dólares que investiu em mim — falei brincalhona e ele sorriu.
— Tenho outra reunião agora, fora do escritório, nos vemos mais tarde — garantiu e foi saindo da sala, deixando nós dois parados no mesmo lugar.
— Ale tem razão; eu estava tão distraído que não percebi esse detalhe, ainda bem que você viu. Shawn tinha mais anos de experiência nesse ramo de negócio do que eu de vida, então eu podia imaginar o quanto ele estava
perturbado, para deixar aquele detalhe passar.
— Obrigada — respondi, mas queria muito perguntar como estavam as coisas com a família de Fernanda, e só não o fiz, porque me lembrei da nossa última conversa, quando ele demonstrou um imenso arrependimento por ter passado uma noite comigo. Ainda não tinha superado a rejeição.
— Bom, eu tenho que ir — falei e saí da sala feito um raio. Eu sabia que seria desconfortável nos encontrarmos a todo momento, mas com o tempo as coisas iriam se ajeitar e talvez eu me acostumasse a cruzar com ele pelos corredores. Infelizmente, não foi assim que as coisas aconteceram. À medida que os dias passavam, parecia que a
tensão entre mim e Shawn só aumentava. Permanecíamos presos naquele maldito dia da virada de ano e mesmo sabendo que as coisas tinham ficado mal resolvidas, nenhum dos dois tinha coragem de tocar no assunto, já que agora havia muita coisa envolvida. Essa sensação pesada tendia a aumentar quando ficávamos sozinhos; era uma verdadeira tortura sempre que meu pai pedia que discutíssemos sobre contratos e orçamentos. Claro que eu mantinha uma postura profissional, mas o olhar que Shawn direcionava para o meu corpo, deixava as coisas bem complicadas, pois minha vontade era ceder ao desejo que sentia. Entretanto, mesmo com toda a eletricidade que fluía entre nós, nossa convivência no trabalho estava ótima, eu conseguia separar as coisas e tinha certeza de que ele apreciava isso, talvez até se sentisse aliviado; Shawn detestaria que eu ficasse lembrando ou jogando coisas na cara dele, homem nenhum gostava disso. Mas minha atitude não se devia apenas a isso, eu respeitava o ambiente de trabalho e não queria que meu pai nos visse brigando, ele esperava o melhor de mim naquele momento e era exatamente o que eu tentaria lhe oferecer. Isso, porém, não alterava meus sentimentos. Sempre que estávamos sozinhos na sala de reuniões, eu sentia vontade de abordar algum assunto pessoal; sentia falta das nossas conversas descomplicadas e leves, mas meu lado racional, que nunca me abandonou, a não ser na noite de Réveillon, sempre estava em alerta e não permitia que eu cometesse deslizes. Apesar de meus esforços para agirmos da forma mais natural possível, nossos assuntos eram estritamente profissionais. Nos tornamos dois estranhos fora da empresa e isso me deixava muito magoada, mesmo sabendo que ele ainda não tinha cabeça para mudar seu foco no momento, a situação com seus sogros continuava péssima, eles ainda estavam chateados e não o queriam por perto. Sabia de tudo isso porque minhas informantes habituais me atualizavam de cada acontecimento. A última coisa que fiquei sabendo, foi que a irmã dela entrou em sua defesa e o mantinha informado sobre a evolução de Fernanda. Se ao menos tivesse a certeza de que assim que ela acordasse as coisas iriam mudar, eu talvez baixasse um pouco a guarda, mas era tudo muito incerto, então decidi ficar na minha e pelo visto, ele havia decidido o mesmo, mostrando-se tão focado no trabalho quanto eu. Tinha que confessar, contudo, que era cada dia mais difícil me segurar. Shawn trabalhava na sala ao lado, com apenas uma porta nos separando e morava na casa vizinha à minha, para onde ia todas as noites, então, o trabalho estava sendo uma fuga. Mas eu não me importava, desde que minha cabeça estivesse sendo bombardeada de números e contratos para não ficar pensando nele. Como acontecia quase todos os dias, havia almoçado com meu pai, e combinamos de ir visitar os terrenos que seriam destinados ao condomínio de sítios, ainda naquela tarde. Ele ficou de passar na minha sala quando estivesse desocupado e fiquei surpresa quando foi Shawn quem apareceu.
— O Alê teve um imprevisto e pediu que eu te acompanhasse na visita aos terrenos, espero que não se importe — ele informou e me encarou em busca de alguma expressão negativa.
— Vamos lá, esta visita já foi adiada por duas vezes — justifiquei, sem me comprometer, e peguei a minha bolsa. Ele me deu passagem e seguimos para fora da empresa, caminhando lado a lado. No trajeto até o elevador e depois à garagem, vi inúmeros olhos femininos e sonhadores voltados para o meu acompanhante. Eu as entendia muito bem, o homem era um sonho e ficava quase impossível não criar fantasias a seu respeito. Quando entramos no carro, o cheiro familiar de couro misturado ao perfume que eu conhecia tão bem, invadiu meus sentidos e eu voltei no tempo, àqueles finais de semana onde ele me levava para passear na fazenda... Logo Shawn saiu do estacionamento da empresa, ligando o som do carro numa seleção de músicas country internacional em seu Spotify. Ele adorava esse estilo e sempre escutava. Mas eu sabia que não era apenas isso, era também uma forma de não precisar conversar comigo. Mais uma vez me vi triste e magoada, aquele não era o Shawn que eu conhecia. Virei o rosto e fiquei olhando pela janela, os pensamentos longe, enquanto o carro seguia pela BR movimentada até ultrapassar os limites da área urbana da cidade. Durante esse período, por duas vezes ele comentou sobre o trânsito, mas logo voltava a ficar completamente focado na estrada. Notei que duas rugas haviam feito morada em sua testa, como se algo o estivesse atormentando. Shawn podia estar com os olhos no volante, mas sua cabeça parecia estar longe dali, e se fosse apostar, diria que era no leito de um certo hospital. Quando chegamos ao local, um dos funcionários do proprietário já nos aguardava. O rapaz nos mostrou parte das terras e falou muito sobre a tranquilidade da região. Shawn fez um caminhão de perguntas, mas pareceu satisfeito com todas as respostas que recebeu. No entanto, toda aquela falação e espontaneidade acabou quando voltamos para o carro e isso me deixou inquieta. Será que continuaria me tratando assim? Afinal, quem tinha motivos para reclamar de alguma coisa era eu, e se já havia lhe dado abertura para agirmos normalmente, não tinha por que continuar agindo assim. Mais uma vez me lembrei que ele já estava com problemas demais e optei por ficar na minha. Cobranças e forçação de barra não iriam ajudar a nossa situação. À certa altura o silêncio começou a ficar pesado demais e ele deve ter percebido, pois acabou cedendo e começou a comentar sobre o condomínio, o que esperavam e algumas ideias que tivera. Suspirei levemente em alívio, era melhor falar sobre trabalho do que não falar nada, além de aquele ser um assunto que deixava tanto eu quanto Shawn mais à vontade. Então, por alguns minutos, conseguimos interagir e as coisas até pareceram normais. Já tinha anoitecido quando ele estacionou em sua garagem e na mesma hora o clima pesado voltou. Shawn desceu antes de mim, deu a volta no carro e abriu minha porta, como sempre fazia. Peguei minha bolsa e desci, despedindo-me logo em seguida, louca para sair daquela bolha de tensão que nos rodeava. Ao chegar à minha casa, tomei um longo banho quente, para ver se conseguia relaxar um pouco, comi qualquer coisa e fui me deitar. Rolei bastante na cama antes de conseguir dormir, pensando em como as coisas estavam confusas na minha vida. Eu sabia que precisava sair daquele círculo de problemas, mas trabalhando e morando ao lado de Shawn, ficava bem difícil.
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