Despertei com uma dor de cabeça dos infernos; parecia que uma escola de samba estava tocando dentro do meu crânio. Levantei-me para ir ao banheiro, mas parei no meio do quarto quando as lembranças da noite anterior me atingiram em cheio. Oh, droga, eu o beijei! Continuei me xingando enquanto tomava um banho demorado para tentar amenizar aquela ressaca. Depois de me arrumar, desci com o intuito de fazer um café forte e encontrei Maria na cozinha; nem me lembrava que era dia de faxina.
— Cê tá com uma cara péssima, Camila — disse quando dei um beijo em seu rosto.
— Bebi todas ontem — admiti, sentando-me na primeira cadeira que vi e me servindo de uma xícara de café, que não estava forte o bastante, mas já me ajudaria. Maria subiu para pegar a roupa suja e tirar toalhas e lençóis do meu quarto. Terminei meu café e me levantei no exato momento em que ela vinha descendo as escadas com um cesto de roupa e um cabide com uma camisa familiar pendurada nele.
— Eu posso até tá ficando doida, mas se num me engano, essa camisa é do seu Shawn. Fiquei sem reação diante da afirmação dela, mas mantive a pose. A maldita camisa que Shawn me ofereceu na nossa primeira noite, antes que me deitasse ao seu lado na cama, veio junto com minhas roupas e estava guardada no meu closet desde então. Eu não quis lavá-la, pois ainda havia resquícios do perfume dele, e por várias vezes a peguei apenas para sentir seu cheiro. Devia ter feito a mesma coisa ontem à noite, mas, diferente das outras vezes, não a guardei apropriadamente e Maria a encontrou.
— Veio por engano da fazenda, junto com minhas coisas e esqueci de devolver. Na verdade, eu não queria devolver, mas não podia falar para ela.
— Vô lavá e deixá no seu closet,depois cê devolve. Assenti, peguei minha bolsa e antes que eu pudesse chegar à porta a campainha tocou. Ao abrir, dei de cara com Shawn, que estava vestido para trabalhar, exceto pelo paletó. Seus cabelos estavam penteados e o cheiro que exalava de suas roupas me deixava com vontade de mordê-lo. Mas então as lembranças da noite anterior voltaram com tudo à minha mente, fazendo-me lembrar do papelão que fiz em sua casa.
— Bom dia, Camila, vim te oferecer uma carona.
— Carona?
— Sim. Pedi que seu carro fosse entregue na empresa mais tarde. Droga! Juro que não tinha lembrado do meu carro. Se Shawn não tivesse batido em minha porta, eu só daria falta dele quando chegasse na garagem.
— Ah, obrigada — falei, sem graça, e seguimos para a casa dele. Mais uma vez Shawn agiu como se nada tivesse acontecido e conversou comigo sobre assuntos da empresa durante o caminho até a Cabello. Enquanto ele falava, pedia a Deus que chegássemos logo, pois a vergonha que sentia estava me torturando de um jeito cruel demais. Toda sua indiferença com relação ao nosso beijo, só me deu mais força para entender que havia feito uma grande burrada. Fiquei pensando que se tivesse passado a noite com ele e sido tratada com esse desdém no dia seguinte, teria sido muito pior. Quando ele estacionou em sua vaga, faltou muito pouco para eu sair correndo, deixando-o para trás; só não o fiz, porque muitos funcionários estavam chegando no mesmo horário e algo assim poderia causar falatório. Pegamos o elevador juntamente com outras pessoas, o que foi ótimo, pois não tivemos que falar nada. Ao chegar em nosso andar, desejei bom-dia a Sandra e apenas acenei para Shawn, entrando em minha sala em seguida, onde fiquei trancada a manhã toda, saindo somente para pegar um cafezinho na copa. No final do dia, sentia-me cansada e não via a hora de ir para casa, mas como meu cérebro ainda estava um pouco lento, não tinha conseguido concluir o trabalho que papai me repassou, e como teria discutir os valores com ele no dia seguinte, peguei uma xícara de café para me manter alerta e foquei nos relatórios. Quando terminei de ler e fazer as anotações pertinentes, já passava das 20h. Salvei meu trabalho, desliguei o computador e quando estava me preparando para sair, escutei alguém entrando em minha sala; era Shawn.
— Seu carro já está no estacionamento — avisou.
— Ah, a Sandra já me entregou a chave, mas obrigada e desculpe o incômodo. Shawn assentiu e continuou me olhando. Ele não costumava ficar até tão tarde na empresa e não acreditava que tivesse batido em minha porta só para falar aquilo. Pela expressão que tinha no rosto, tive esperanças de que ele tivesse ido ali disposto a conversar sobre a noite anterior, mas para variar, ele desistiu no último minuto.
— Boa noite, Camz — disse, por fim, e se foi, me deixando mais frustrada ainda. Esperei alguns minutos ali, com a chave do carro na mão e a bolsa no ombro; não queria passar pelo constrangimento de descer com ele no elevador. Quando entrei em casa, um delicioso cheiro de limpeza pairava pelo ar. Parei na cozinha para tomar água, e subi para o meu quarto. Enquanto tirava as sandálias, peguei meu telefone e vi que havia uma chamada não atendida de Rafaela. Retornei a ligação, coloquei no viva-voz e continuei me despindo enquanto conversávamos.
— Não acredito que você desenhou um coração na janela do carro dele e ainda agarrou o coitado.
— Pois é, depois de praticamente invadir a casa dele. Rafa gargalhou demais com o meu relato.
— Camz, eu acho que o Shawn está muito confortável com essa situação. Você está agindo como se estivesse à espera dele. Acho que na cabeça dele, é só assobiar, que você vai correndo. Lembra dos conselhos que me dava quando lia aqueles romances americanos? Bem, comece a agir como aquelas mocinhas engenhosas e não vai demorar para ele tomar uma decisão. Quando estava na Universidade, logo depois que saí da depressão, eu devorei dezenas de livros sobre comportamento e relacionamentos, foi uma das coisas que me ajudou a ver que havia vida sem Shawn e seguir em frente. Além disso, me deliciava devorando um romance atrás do outro. Houve uma época que me tornei uma espécie de guru das minhas amigas da universidade, elas adoravam os meus conselhos e dicas para deixar os homens delas aos seus pés. Mas com ele as coisas eram diferentes. Não conseguia colocar nenhum dos meus ensinamentos em prática e aquilo me fazia sentir impotente diante da coisa toda. Contudo, Rafa estava certa, eu não pretendia me jogar em cima de Shawn, praticamente o obrigando a ficar comigo, mas também não podia esperar tão passivamente que ele decidisse o que fazer.
— Vou pensar na melhor forma de fazer isso, amiga — prometi e conversamos por mais alguns minutos, até ela ter que desligar quando sua mãe a chamou para ir jantar. Fui tomar um banho e resolvi ir caminhando até a casa dos meus pais. Quando entrei, eles estavam sentados na sala, bebendo vinho e conversando. Mamãe tinha a cabeça encostada no ombro de papai, enquanto a mão dele lhe acariciava o braço. Os dois faziam tudo juntos, viviam como se fossem eternos namorados e eu amava isso. Eram o melhor exemplo de casal que eu tinha e, com certeza, me espelhava neles para construir um futuro relacionamento.
— Atrapalho? — perguntei, aproximando-me.
— Oi, filha, claro que não, chegou na hora certa. Quer uma taça de vinho? — papai ofereceu enquanto eu abraçava minha mãe, estava morrendo de saudades.
— Quero, sim, obrigada. Recebi minha taça e ficamos conversando por um bom tempo. Papai falou rapidamente sobre as reuniões que teria no dia seguinte e comentou que pretendia fazer um cruzeiro com minha mãe pela costa do nordeste. Eles adoravam fazer pequenas viagens para conhecer novos lugares e eu os apoiava incondicionalmente. Depois de muita conversa, resolvemos pedir uma pizza e, como de costume, meu pai mandou mensagem para seu sócio pedindo que se juntasse a nós. Shawn chegou uns vinte minutos depois, gostoso como sempre, usando jeans e camiseta. Meu pai comentara que quando ligou, ele havia acabado de sair do hospital onde a Fernanda estava internada e saber daquilo me deixou desconfortável. Não por ele estar lá, mas por perceber que por mais insatisfeita que estivesse com nossa situação, para ele as coisas estavam ainda piores, já que precisava lidar com a culpa que carregava por sua noiva estar naquele estado, com a pressão da família dela, que também o culpava e agora, comigo, que parecia ter voltado à adolescência. Fomos para o balcão da cozinha, onde ele aceitou a taça de vinho que meu pai lhe ofereceu, e ficamos conversando até que a pizza chegasse. Depois do jantar, abrimos mais uma garrafa e seguimos noite adentro. Conforme Shawn falava com meu pai, me peguei admirando a forma respeitosa com que se dirigia a ele. A diferença de idade entre eles não era muito grande, mas ainda assim, Shawn o tratava com deferência, e o mesmo acontecia com meu pai. Além de amigos, havia um grande respeito entre os dois e pela primeira vez entendi o receio de Shawn. Era muito provável que um possível relacionamento entre nós, acabasse com tudo isso e eu não sabia como reagiria se tivesse que escolher. Queria ter coragem de falar sobre esse assunto com meu pai, morria de curiosidade de saber seu posicionamento sobre eu ficar com um homem mais velho, mais precisamente com seu melhor amigo.
— Eu já vou indo — falei, de repente, e me despedi de todos. Fiz o caminho sem pressa, admirando a luz do luar e aproveitando a noite agradável. Quando cheguei em frente de casa, não senti vontade de entrar, então me sentei nos degraus que davam acesso à entrada, espalmei as mãos no piso atrás de mim e continuei olhando para o céu. Minutos depois ouvi o ronco do motor do carro de Shawn no final da rua e me apressei em entrar, não queria dar a entender que estava esperando por ele. Naquela noite, antes de dormir, fiz uma oração com toda sinceridade que havia em meu coração. Pedi que Deus abrisse os caminhos da minha vida para que pudesse viver em paz, sem toda a ansiedade que me consumia. Também pedi que me desse uma luz quanto a Shawn. Eu não o queria pela metade, mas não achava que tinha estrutura para ficar esperando indefinidamente, então, se fosse para ele ser da Fernanda, que isso acontecesse de uma vez para que eu pudesse me libertar desse amor. Na quinta-feira, Shawn ficou fora o dia todo. Não perguntei a ninguém sua agenda ou o que diabos ele andava fazendo, e fiquei bem com isso, não dava para conseguir esquecê-lo se ficasse seguindo todos os seus passos. Na sexta, o dia começou agitado na empresa e só parei quando Sandra entrou na minha sala com o olhar ressabiado.
— O que houve? Ela olhou para a porta que dava acesso à sala de Shawn e foi até a minha mesa.
— Parece que a Fernanda acordou. Fechei os olhos e absorvi o baque. Pelo jeito, o Homem lá de cima ouviu minhas preces, e agiu muito mais rápido do que eu esperava.
— É uma ótima notícia, Sandra — tentei disfarçar minha inquietação
— Acho que agora ele termina de vez com ela. Arregalei os olhos. De todas as minhas informantes, Sandra sempre foi a mais discreta, mas pelo visto, sua sutileza havia ficado para trás.
— Por que diz isso? — perguntei, arrumando alguns papéis na minha mesa, como se não estivesse morta de curiosidade.
— Meu irmão é dono de um barzinho que o Sr. Shawn costuma frequentar, e numa conversa, há poucos dias, ele confessou que não aguenta mais essa situação e muito menos os olhares incriminadores da família dela. Shawn estava aguentando tudo aquilo por ter uma índole incontestável, ele jamais a deixaria só nesse momento, e parecia que os pais dela estavam se aproveitando da culpa que ele mesmo sentia.
— Talvez aconteça o contrário e eles se acertem — falei, contrariada.
— Acho que não, Julia, pelo que ele disse ao meu irmão, orelacionamento já estava bem saturado, mas ela não aceitava que as coisas terminassem de vez, parece até que inventou um noivado surpresa no Natal, para ver se o segurava, meu irmão não soube explicar direito. Pelo jeito, Shawn confiava muito no irmão de Sandra ou jamais confidenciaria todas essas coisas.
— Shawn é um bom homem, com certeza vai achar um jeito de sair dessa situação sem magoá-la, mas tenho certeza de que não fará nada assim, de cara — comentei.
— É, não seria do feitio dele. Mas não acredito que vá protelar muito, isso só vai fazer com que ela tenha mais esperanças e Shawn sabe disso. Mal vejo a hora de vê-lo se livrar dela e dar uma chance a vocês. Ainda acho que vão acabar casados e já aviso que quero ser madrinha. Balancei a cabeça e sorri. Parecia que a secretária da presidência tinha se juntado ao fã clube “Camila e Shawn casados”. No meio da tarde liguei para Karen. Ela estava dividida entre a fazenda e a casa de Shawn na cidade, pois não queria deixá-lo sozinho nessa situação e já tinha um tempo que não conversávamos.
— Acredita que a Fernanda acordou do coma e não quer ver o Shawn; a mulher só pode ser doida mesmo.
— Foi a primeira coisa que me falou, de forma exasperada. A informação me deixou muito intrigada. Como uma mulher que correu atrás de um homem por tanto tempo, acorda e não quer mais vê-lo? Será que teve alguma epifania enquanto dormia?
— Me conta direito essa história — pedi.
— Parece que ela se deu conta das loucuras que estava fazendo por causa dele e terminou o tal noivado que ela mesma inventou. No fundo, eu fiquei feliz, pois agora meu filho está livre para seguir a vida. Tive vontade de dar pulinhos de alegria por saber que Shawn havia, finalmente, se livrado dessa mulher.
— E como ele reagiu?
— Não me disse muita coisa, mas imagino que deve estar se sentindo péssimo. Apesar de não a amar mais, ninguém gosta de ser rejeitado, ainda mais nessas circunstâncias. A família dela o crucificou demais e tenho para mim que foram eles que fizeram sua cabeça para terminar tudo. Mas eu conheço meu filho e sei que, no fundo, ele está bem aliviado. Ela vai ficar mais alguns dias no hospital, mas como está bem, deve receber alta em breve. Conversei com Kareum por quase uma hora, escutando todas as suas lamentações sobre a família da Fernanda. Quando desliguei, não sabia o que pensar nem o que esperar. O que Shawn faria agora? Fiz aquela pergunta a mim mesma incontáveis vezes durante o dia sem conseguir chegar a uma resposta aceitável. Quando estava entrando em meu carro, no final do expediente, Rafa me ligou.
— Camz, vai fazer alguma coisa hoje à noite? Não, nada para fazer nas minhas sextas-feiras.
— A princípio, não — foi o que respondi.
— Ótimo, porque o Davi
me convidou para ir em uma boate nova.
— Ele convidou a você — rebati, odiava sair de vela.
— Não começa, vários amigos dele também vão, é sua chance de conhecer alguém legal e esquecer o Shawn. Rafa não sabia que a Fernanda tinha acordado e que por causa disso eu estava mais confusa do que nunca. Mas diante de tudo o que estava acontecendo, a ideia de sair e conhecer pessoas novas me deixava bem animada.
— Ok, eu vou, nos falamos mais tarde. Tinha certeza de que Shawn não estaria nessa boate, primeiro porque era um homem caseiro, depois, porque fazia só algumas horas que seu relacionamento conturbado havia terminado e ele, provavelmente, aproveitaria o final de semana para esfriar a cabeça na fazenda, já que não tinha voltado lá desde o acidente da Fernanda. Assim que cheguei à minha casa, tentei deixar de lado todos os problemas da empresa e, principalmente, os emocionais. Não era dia de ficar pensando se Shawn estaria triste ou feliz com o término do noivado, estava cansada de me torturar com coisas que estavam fora do meu controle e voltar a ter controle das minhas vontades. Naquela noite eu só queria beber um pouco para relaxar, dançar bastante e me divertir, coisa que eu não fazia há muito tempo e, principalmente, tentaria esquecer que Shawn Mendes existia.
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