Cap.92 - Lealdade e Dever

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“Eu senti a sua falta a vida inteira, Azzy...” – Shēnxiù Qī murmurou, permitindo que o cheiro de cedro e névoa preenchesse seus sentidos, permitiu o prazer pelo contato com a pele de seu Parceiro... seu Parceiro!

Aquele a quem ela já havia nascido ligada pelo Laço de Amor e que a fez sofrer pela ausência, a estilhaçando dia após dia enquanto ainda não havia perdido sua liberdade.

“Eu sentia tanto a sua falta... então me encolhia nos cantos mais escuros do Canil, acreditando que as sombras eram a sua presença...” – Azriel soluçou, fechando um pouco mais os braços entorno de Shēnxiù Qī. “Até o dia que me esqueci de tudo... e parei de sentir, porque não suportava mais o sofrimento...”

Shēnxiù Qī se desvencilhou e se afastou o suficiente para olhar para Azriel. Rastros brilhavam na face dele, lágrimas que ele nunca permitiu derramar por nada e ninguém além dela, além de Rigel. Ela enxugou as lágrimas, acariciando o rosto que pensou jamais esqueceria... mas esqueceu por um longo século.

“E quando tudo se tornou insuportável e a morte se tornou bem vinda, eu me tranquei na proteção que o meu pai criou em minha mente e aceitei a completa escuridão, acreditando que era lá que você estaria, Azzy...”

Azriel baixou a cabeça, encostando-se à testa de Shēnxiù Qī. As lágrimas de dor e arrependimento desciam, agora, em profusão. Mesmo depois de tê-la decepcionado, repelido, magoado!, Rigel ainda buscara nele o conforto e a proteção que ele se negou a oferecer quando ela veio até ele suplicando por isso. Ele sequer deveria ousar em pedir perdão!

“Você está perdoado, Azzy...” – Shēnxiù Qī murmurou, ouvindo o que o coração de Azriel lhe suplicava. Ela sentia perfeitamente os sentimentos dele e, teve certeza, então, que eram verdadeiros.

E teve certeza de que ele, nunca, se mancomunou com seu pérfido irmão para roubar a coroa da Corte Noturna. Mas... a coleira que o prendia à obediência servil e cega ao Grão-senhor era um obstáculo intransponível.

“Você está perdoado porque... também é um escravo!”

Shēnxiù Qī murmurou em silêncio contra a boca de Azriel, fechando as mãos no pescoço forte do illyriano, antes de beijá-lo com paixão e tristeza. Azriel retribuiu sem reservas, tomado pela embriagues das emoções e do Laço de Parceria.

“Eu te amo e te perdoo, Azriel...” – Shēnxiù Qī se afastou, soltando-se do beijo e do abraço, erguendo-se em superioridade ao homem ajoelhado à sua frente, erguendo todas as muralhas contra ele e seu passado. “mas... eu não confio em você!”

Antes que Azriel conseguisse processar todas as palavras e se refizesse do choque, Shēnxiù Qī levou a mão direita sobre a cabeça dele, deixando o polegar posicionado entre os olhos, direcionado à glândula pineal.

“Como herdeira majoritária da Corte Noturna e Senhora de seus servos, eu o proíbo, Encantador de Sombras Azriel, mencionar qualquer coisa a respeito de Rigel. Você não será capaz de comunicar a existência de Rigel de nenhuma forma e a ninguém, nem mesmo sob as ordens do seu Grão-senhor. Azriel, você agora é um Fiel do Segredo inquebrantável, a menos que eu o libere desta obrigação!”

Tontura acometeu Azriel, que bambeou e quase tombou no chão rochoso, apoiando-se em sua mão direita. Trevas densas encobriram seus olhos e ouvidos, e sua língua travou ao tentar pronunciar o nome de Rigel. Seu braço fraquejou e ele caiu de lado, só então saindo do momentâneo estupor. Piscou várias vezes para clarear a vista e só então voltou-se para Shēnxiù Qī, encontrando nela a típica máscara amímica e indiferente.

Em torno do pescoço illyriano, onde Shēnxiù Qī havia acariciado, uma faixa estreita se desenhou em toda circunferência, fechando-se com um símbolo antigo da Língua Maldita, o idioma dos Onis.

“O que... você fez?!” – Azriel perguntou incrédulo. A perturbação em relação à Shēnxiù Qī voltou e tudo tornou-se embaçado novamente... embora ele se lembrasse com perfeição quem ela era de fato e o que ela representava para ele.

“Você deveria ter mais cautela com alguém que esteve no inferno e aprendeu com demônios tudo que sabe. A nossa história acaba aqui, Azriel. Leve-me de volta para a hospedaria e vá embora para sempre da minha vida.”

Sem discutir ou questionar, Azriel levantou-se, segurando no braço de Shēnxiù Qī com apenas a firmeza necessária para atravessá-la junto dele.

No alto da rocha, mais ao longe, Lumen escorregou para o chão. Lágrimas lavavam o rostinho moreno. A dor e a desesperança preenchiam o seu pequeno coração luminoso. Tĭi, o filhote de morcego-raposa, planou até ela, fornecendo o conforto e amparo da sua presença.

Lumem sentou no chão e escondeu o rosto em seus joelhos. Suas pequenas asas illyrianas fecharam-se sobre ela como um casulo. Tĭi encolheu-se ao lado dela, sem saber o que fazer. Ele era um pequeno psicopompo, um guia da Morte.

A noite se tornou mais densa às costas da criança illyriana, e jorrou em miríade de estrelas. Um homem alto e elegante pisou para fora da nebulosa, chamando com doçura pela pequena, num tom de voz que jamais usou com ela em vida.

Lumen não hesitou ao chamado e correu para os braços do Grão-feérico, que a acolheu em seu colo. A menina deitou a cabeça no ombro do homem, chorando sem compreender como tudo podia dar errado de um momento ao outro.

“Acalme-se. Tudo vai dar certo na hora certa.” – O Grão-feérico falou, acariciando os cabelos cacheados da pequena.

“Ela rejeitou o papai!” – Lumen gritou engasgada com as lágrimas. “Eu não vou poder mais nascer!”

O Grão-feérico riu, ainda tentando consolar a criança. A noite envolveu a ambos numa cadência de estrelas e escuridão.

“Não seja dramática. Você ainda poderá nascer através do nosso filho.”

Lumen ergueu a cabeça, encarando os olhos violentas que a olhavam com a doçura que nunca teve entre eles enquanto existiam no mundo.

“Não posso ser filha do Rhys! Minha dívida é com Rigel!”

“Não quer ser irmãzinha de Mintaka?”

A menina fez uma careta. “Que nome horrível deram a você!”

Rindo, o antigo Grão-senhor da Corte Noturna caminhou entre a nebulosa, deitando a cabeça de Lumen de volta ao seu ombro. Tĭi voou até as costas da pequena, aconchegando-se ali.

“Tenha um pouco mais de paciência, querida... nossa filha ainda tem muito a se curar... tenha paciência...”

)O(

A escuridão entre as topiarias tremeluziu, e das sombras Azriel atravessou com Shēnxiù Qī, que deu um passo adiante, não se dignando a olhar para ele. Estancou quando ele não soltou o seu braço, obrigando-a a encará-lo, ela querendo ou não isso.

Não queria olhar para o rosto de Azriel nunca mais, pois isso poderia fazê-la fraquejar em sua decisão. Seu coração já sangrava em lágrimas amargas, mas não poderia ser piedosa e ceder aos caprichos tolos de sentimentos cegos.

O rosto de Azriel era a máscara amímica do Mestre Espião. Ele se aproximou de Shēnxiù Qī, liberando-a de seu agarre. Ela o encarou de queixo erguido, pronta para alguma retaliação.

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