Mesmo após décadas distante do cerne do Império, e mais décadas ainda desde a última vez que habitou naquela colossal fortificação milenar que era o Palácio Imperial, Shēnxiù Qī sentia o mau agouro que ainda emanava daquelas pedras. Mesmo com a beleza suntuosa e a claridade que adentrava através de largas janelas abertas após a grande guerra, o lugar ainda fedia a degeneração.
Shēnxiù Qī respirou fundo, empurrando para baixo todas as sensações ruins que lhe assaltavam todas as vezes que era obrigada a estar naquele lugar. E, para sua coleção de infelicidades, até a última vez, durante o Baile Imperial, entrou para a coleção de itens a repudiar sobre o Palácio!A sua sorte nefasta a fez quase se embater com seu pérfido irmão, que causaria um desastre diplomático que ela sequer conseguia imaginar a dimensão! Além da invasão mental que sofreu daquela estranha mulher de alma humana... e que carregava no ventre a continuação da sua família, que também era sangue do seu sangue.
Um nó se agarrou à sua garganta e Shēnxiù Qī fechou os olhos por instantes, controlando suas emoções rebeldes que a envergonhavam. Dois séculos domando sentimentos vãos de fraqueza e ela ainda sofria com isso! Era nessas horas que sentia falta da Oclusão.
Um som de metais batendo em uníssono no chão de mármore e o farfalhar de panos e armaduras chamou Shēnxiù Qī de volta à realidade: diante dela havia quatro soldados pretorianos da Guarda Imperial ajoelhados, com as mãos justapostas diante dos rostos cobertos por máscaras. Eles faziam a saudação militar dispensada aos oficiais das altas patentes do Império e só então Shēnxiù Qī lembrou-se...
Dentro do Palácio ela não era apenas a Capitã do Reino Leste. Ali a sua patente era a mais alta de toda a hierarquia militar de Xian, sendo subordinada apenas ao Ministro de Guerra e ao Imperador.
Ali ela era um dos nove Gensui de Xian – um Marechal, patente essa conquistada após a vitória na Batalha Boshin, onde ela assumiu o exército de Huang Ti e das tribos insurgentes como Comandante em Chefe.Afinal, dentre todos, ela era a única que conhecia os meandros da grande fortificação que era o Palácio de Onigen e da fortaleza inexpugnável que era a Cidade Proibida.
Mas... seja por modéstia ou porque realmente acreditava não merecer tal tratamento (e ela, de fato, seria tratada de forma completamente diferente se soubessem que ela fora um Cão de Caça! – alguém que merecia o ódio da nação! E nada do que fizesse mudaria o seu tenebroso passado!), essas formalidades a deixavam constrangida, embora não demonstrasse nada em seu exterior.
Os quatro soldados se reergueram, terminando a saudação com uma acentuada inclinação, ainda mantendo as mãos justapostas enquanto seguravam o cabo da lança que portavam.
“O Venerando e o Sr. Ministro a aguardam, senhora.” – Um dos soldados informou.
“É um prazer revê-la, Mestre Shēnxiù Qī!” – Outro sussurrou logo em seguida, fazendo a Capitã relaxar sua tensão e deixar transparecer um sorriso tímido.
Se havia um algo que Shēnxiù Qī se orgulhava de si própria era a sua condição de “Sensei” – Professora e Mestre.
***
Por mais uma vez que estiveram no Palácio Imperial, por mais uma vez tiveram que passar pelo acirrado controle de segurança da Guarda Especial, o que não deixava de arrancar comentários jocosos de Rhysand junto a Helion e alguns outros representantes de Prythian, pois somente o Grão-Senhor da Corte Noturna seria suficiente para pulverizar o Palácio e toda a Cidade Imperial... assim pensavam.
Tanto Cassian quanto Azriel ficavam desconfortáveis com tais comentários. Como guerreiros mais do que experimentados, sabiam que o pior a se fazer é subestimar um potencial oponente... especialmente um oponente que busca se tornar uma soberania militar a nível mundial!
Feyre parecia não concordar com essa postura arrogante, embora já estivesse acostumada. E, por causa da gestação, ela estava se tornando mais emotiva e menos paciente. No entanto, ainda tinha algum autocontrole e evitava cair em tentação de discutir com o Parceiro por uma bobagem. Ela sabia que, tanto Rhysand quanto os outros grãos-senhores, estavam apenas competindo vaidades entre eles.
“Não acho que a nossa presença seja tão importante para essa conferência...” – Feyre cochichou ao lado de Cassian e Azriel, ambos mais afastados do grupo de grão-feéricos de Prythian. “... e Rhys pode muito bem representar todos nós...”
“O que nossa Grã-Senhora sugere?” – Cassian perguntou polidamente, mas sem esconder a satisfação que as palavras de Feyre lhe traziam.
“Vamos... bisbilhotar por aí, que acham?” – Feyre sussurrou, tendo uma expressão de criança travessa. Por um momento sentiu a atenção desconfiada de Rhysand sobre ela, ignorando a sensação com uma risada abafada.
“Acho que essa função é minha e devo alertar que este lugar inteiro está protegido contra espionagem. Nem atravessar aqui dentro é possível.” – Azriel respondeu de forma monótona, observando com preguiça tudo à sua volta. Apenas saiu de sua introspecção quando ouviu a risada controlada à força de Feyre.
“Az! Sabe que não é isso que estou dizendo, não é” – Feyre falou entre risos. “Estou convidando vocês dois para darmos uma volta por aí e vermos as belezas desse lugar, só isso! Soube que há áreas enormes destinadas às obras de arte e gostaria muito de ver. Podemos ir, então?”
O Encantador de Sombras relaxou ante a boa disposição de sua Grã-Senhora, permitindo-se um leve sorriso. “Desculpe... é claro que podemos ir.”
“Ok, então, bóra lá!” – Cassian incentivou, desesperado para sair daquela antecâmara. “Eu não aguento a conversa desses almofadinhas coleguinhas do Rhys!”
Feyre e Azriel riram da urgência de Cassian, e Feyre conteve com a mão uma risada mais calorosa ao ouvir o ronronar de Rhysand pelo vínculo, onde ele deixava claro que percebia tudo o que os três estavam tramando às suas costas.
“Vamos sair logo daqui antes que Rhys exija a nossa permanência. Mintaka não aguenta mais esses congressos!”
****
Dentro da enorme galeria de arte, toda dedicada ao período Bakumatsu, a Guerra dos 12 Anos, e a Restauração da Era de Ouro e Dinastia Celestial, Ziyi caminhava a passos lentos, já entediada por estar ali e com Choo-Kheng discorrendo sobre cada peça exposta.
Ela sabia de cor e salteado a história de cada coisa que ali estava, pois todas as vezes que visitava o Setor Cultural do Palácio, sua Professora aproveitava para lhe ensinar a História contida em cada escultura, pintura, tapeçaria e cerâmicas.
“Ah, Madame Choo-Kheng... eu já sei sobre tudo isso aí! São as mesmas coisas que vejo há dez anos, desde a primeira vez que me trouxe aqui! Não tem nada de novo neste lugar!”
“Aqui é um tipo de Memorial, não há como ter coisas novas!”
Ziyi revirou os olhos, fazendo uma careta. “Não falo novo de novo! Mas, novidades! No Museu de História Nacional sempre tem coisas novas que os historiadores descobrem e levam para lá! Podíamos ir até lá, o que acha?”
“Não podemos sair do Palácio sem o consentimento de Shēnxiù Qī e muito menos sem que ela saiba. Ademais, ela não deve se demorar ao que veio, podemos muito bem esperar com toda a paciência.”
“Só se for você...” – Ziyi resmungou contrariada, volvendo para outra direção, chutando o ar no caminho.
Choo-Kheng levou as mãos à cintura, censurando a atitude infantil da Princesa. “Será possível que Vossa Alteza não consegue se comportar como a mocinha que é?!”
Um calafrio percorreu Ziyi da cabeça aos pés, fazendo-a se tremer por inteiro. “Urgh! Eu o-dei-o essa palavra mocinha! Eu a proíbo de me chamar assim, Michelle Choo-Kheng!”
A resposta que recebeu foi uma leve risada sarcástica de sua Professora, irritando-a ainda mais. Ziyi saiu chutando de novo o ar do caminho, bufando. Seguiu para o próximo salão da galeria, tentando ficar o mais longe possível de Choo-Kheng.
Atravessou o salão das esculturas e cerâmicas, saindo onde ficavam expostas as grandes telas que representavam cenas importantes das batalhas travadas e dos heróis do Bakumatsu, os comandantes e os soldados que se destacaram no terrível período da Guerra dos 12 Anos.
Ziyi estacou por um instante, surpreendida pela figura imóvel diante de uma das telas. Pensava que apenas ela e Madame Choo-Kheng estariam por ali naquele momento.
Heike estava sozinho, o que já era estranho por si só, pois ele nunca ficava desacompanhado de seu tio e Instrutor, o Capitão Fenrir. E ele estava em contemplação, absorto sobre uma tela específica que devia medir dois metros e meio de comprimento e ficava centralizada na parede branca sobre o brasão de armas do Império.
Porém, o mais estranho de tudo para Ziyi, foi perceber que ele mantinha uma espada embainhada firmemente presa em seu punho esquerdo. Tirando as ocasiões de treino e competições, jamais vira o seu amigo portar uma espada. Talvez fosse alguma solenidade que ele fora obrigado a participar, mas ele trajava as vestimentas principescas comuns.
A Princesa deu dois passos em direção ao amigo, mas um burburinho mais à frente, advindo do próximo salão, chamou mais a sua atenção, pois se lembrou de imediato a quem pertenciam àquelas vozes alegres.
Feyre adentrava a Sala dos Quadros falando, rindo e gesticulando de forma mais efusiva do que o aceitável para os padrões de Xian, tendo Cassian ao lado participando animado da conversa. Apenas Azriel, como de praxe, vinha atrás da dupla, amímico e silencioso.
“Grã-Senhora! Que bom revê-la!” – Ziyi se adiantou, antes de perceberem-na ali.
“Oh, Princesa Ziyi!” – Feyre se surpreendeu, pois não havia pressentido a presença de ninguém naquele lugar. E olhando a expressão levemente surpresa de Cassian e Azriel, eles também não haviam percebido. “Eh... prazer em revê-la, também! Como está?”
“Esse lugar está mais protegido do que eu supunha...” – Azriel sussurrou para ninguém em particular, referindo-se ao fato de nenhum deles estar conseguindo pressentir com antecedências presenças próximas.
Como se não tivesse acabado de se indispor com sua Professora e saído chutando o ar, Ziyi presenteou a todos com o seu sorriso mais luminoso.
“Estou ótima e feliz por saber que Vossa Majestade ainda se lembra de mim!”
“Não poderia jamais me esquecer de você Ziyi...” – Feyre replicou, lembrando-se dos vários esboços que fizera em giz pastel da jovem princesa em sua demonstração de esgrima, há vinte dias. Uma movimentação sutil ao seu canto esquerdo lhe chamou a atenção, encontrando o pequeno licantropo olhando para eles com um misto de curiosidade e censura. “Também não poderia me esquecer do seu amiguinho...”
“Estou magoado...” – Cassian se intrometeu. “Parece que deixamos de ser os draconianos favoritos da Princezinha...” – Suspirou melodramático, mas o efeito foi contrário.
“Princezinha?!” – A expressão soou tão ofensiva aos ouvidos de Ziyi quanto à palavra ‘mocinha’ de Choo-Kheng e Shēnxiù Qī. “Eu sou o terceiro herdeiro da Monarquia da Casa Real do Leste! Não sou uma princezinha”...!
“Ops, falha nossa!” – Cassian se desculpou sem graça, surpreendido pela postura e tom autoritários de Ziyi, inéditos para ele. Para todos eles, aliás.
“Acho que agora não é mais mesmo o draconiano preferido, Cass...” – Azriel debochou, não deixando de notar, no entanto, a mudança de humor da Princesa atrelada exatamente aos limites toleráveis dos xianeses. Limites estes que ele próprio extrapolou algumas vezes, amargando as consequências por ter provocado Shēnxiù Qī.
E a mais simples lembrança drenava a sua ínfima disposição. Do Céu ao Inferno era como se sentia em relação a ela... à Rigel...!
“Está tudo bem. Mas que isso não se repita... nunca mais!” – Ziyi olhou para Cassian de cima a baixo, duas vezes, no alto de sua arrogância que foi interrompida pelos passos propositalmente barulhentos de Choo-Kheng.
“Estou feliz em revê-los num espaço tão curto de tempo. Pensei ter sido a última vez ontem, confesso...” – Choo-Kheng fez uma mesura suave aos illyrianos e uma mais longa à Feyre.
De certa forma, aquilo soou constrangedor. Foi inevitável a lembrança ainda tão fresca do ocorrido ontem entre Shēnxiù Qī e Saito Hajime. Feyre percebeu isso e iniciou uma conversa amena, salvando a todos do silêncio intimidante, como se qualquer menção ao ocorrido fosse quebrar um segredo grave.
“Viemos para assistir e acompanhar um novo debate, mas... preferimos conhecer um pouco mais do Palácio Imperial antes disso, pois soube que aqui há uma enorme galeria de arte. Eu sou pintora e ensino a arte para as crianças da nossa terra e gostaria de adquirir mais conhecimento e inspiração com as obras de Xian! Todas que vi até o momento são extraordinárias!”
“Oh, estou encantada por saber isso! Aqui no Palácio temos as artes históricas criadas para eternizar as conquistas da Guerra dos 12 Anos, o Bakumatsu, e para honrar a todos que deram seu sangue e suas vidas para que a Era de Ouro nascesse!”
“Aqui é um Memorial e cada pintura, cada escultura, cada tapeçaria ou cerâmica contam um pouco sobre o Bakumatsu e seus heróis.” – Heike se intrometeu, sem se aproximar. Ele ainda permanecia parado diante do mesmo quadro.
“Ah, falou o queridinho das professoras! O estudiosinho perfeito!” – Ziyi resmungou para ninguém em particular.
Somente então todos deram alguma atenção ao tímido Heike, que estava sendo ignorando até então. Em Azriel, o interesse foi maior, pego pela percepção que ainda não tivera até aquele momento.
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☆ RESSURRECTO ☆ Corte De Espadas E Ressurreição ☆
Fiksi PenggemarA IRMÃ de Rhysand está VIVA e o repudia com todas as forças! Por 200 anos, acreditou que ele planejara a morte dos próprios pais para tomar o poder sobre a Corte Noturna. Portanto, RIGEL fará de tudo, até se envenenar com Faebane, para se manter oc...