Cap. 83 - Traída

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Havia uma lembrança maldita que jamais se apagou das memórias de Rigel, um único episódio do qual ela não conseguia superar em hipótese nenhuma: a morte de sua mãe.

Ainda ouvia os gritos de dor e desespero dela enquanto era submetida pelos demônios da Corte Primaveril. Os gritos de sua mãe ainda atravessavam a sua cabeça, enquanto as asas dela eram serradas com lentidão, e os braços eram quebrados enquanto ela lutava em vão para se libertar.

E, somente depois de adulta, Rigel, já então sem um nome e com um passado tenebroso, entendeu o que mais havia acontecido, que escapava da sua compreensão até então. O amigo de Rhysand tapou seus olhos e ouvidos, a afastando da imundície e perversidade que faziam contra sua mãe, mas não o suficiente para que ela não ouvisse completamente.

Tamlin a afastara da cena, levando-a para dentro da floresta, aproveitando-se da distração dos irmãos e do pai enquanto torturavam e estupravam a mulher. Mas, mesmo com seus ouvidos tampados e a distância, os gritos de sua mãe ecoaram em seus ouvidos, gravando-se em sua alma para sempre.

Michelle Choo-Kheng, de alguma forma, preencheu o vazio e amenizou essa dor ao longo de duzentos anos, mesmo quando Rigel não mais existia e um escravo hebetado era tudo o que a jovem Princesa da Corte Noturna havia se tornado.

Portanto, beirando à raia da irracionalidade, despertando o instinto primitivo de proteção pura e selvagem, qualquer ameaça contra a sua mãe adotiva era das poucas coisas que Shēnxiù Qī não conseguia controlar em seus impulsos de atacar e defender.

Assim ela agira contra a Corte Noturna no fatídico baile.

Assim ela agia contra a prepotência e desvario de Saito Hajime.

Shēnxiù Qī compreendeu completamente o que ouviu da boca do Comandante da Guarda Urbana, mesmo usando o idioma áspero do Reino Oeste. E ele mal proferiu sua última palavra quando a Capitã puxou ruidosamente a espada da bainha desgastada de couro, e o silvo do metal da lâmina contra o metal da parte interna foi alto e agoniante – uma sentença de morte!

A espada desceu em um arco, acertando Hajime no ombro direito, cortando na diagonal até o quadril esquerdo. A força do golpe não apenas quebrou parte da armadura que o Comandante usava, como o lançou em metros de distância, fazendo-o rolar de costas pela ponte em arco, parando apenas quando bateu contra o calçamento em pedra da outra extremidade da ponte.

Mesmo com as contenções magísticas, embora sem o efeito do Faebane que não era ingerido há três dias, o poder de Shēnxiù Qī faiscava pelas pontas de seus dedos, tentando escapar como serpentes jogadas no fogo. A energia do Éter estalava entorno da feérica, e um raio em forma de foice ainda a circundava, mostrando o exato trajeto feito pelo golpe da espada.

Um vazio vermelho preencheu sua cabeça e ela não enxergava nada além do estúpido grão-feérico caído à sua frente, ao longe. Seus passos lentos, como de um predador se preparando para o ataque, foram detidos apenas pelos rumores distantes que vinham às suas costas, só despertando de fato quando ouviu Choo-Kheng gritar o seu nome pela terceira vez.

Os três jovens guardas urbanos correram ponte acima, com as armas em ristes e prontos para o ataque. Eles não reconheciam a Capitã e tudo o que viam era uma ameaça trajada nas vestes dos lendários Cães de Caça, os Shuryō Inu, que eles aprenderam a odiar durante os estudos e treinos na academia militar.

Azriel, embora a confusão de sensações e sentimentos que o ameaçavam afogar, se posicionou em defensiva à Shēnxiù Qī, mas sequer foi capaz de dar três passos, interrompendo-se pela reação imediata de sua Companheira.

Os guardas avançaram apenas poucos metros quando Shēnxiù Qī se voltou para eles, golpeando o ar com a espada, formando um arco de pura energia etérica que foi o suficiente para os três rapazes serem jogados para longe como se pegos por um chicote de vento.

Fenrir agarrou Ziyi e Heike em seus braços, saltando para longe antes que fossem atingidos pelos guardas arremessados. Os três vinham no encalço para descobrir o que estava acontecendo e mal haviam pisado na ponte quando presenciaram o princípio de combate.

Choo-Kheng se colocou diante de Shēnxiù Qī, segurando-a pelos braços, tentando desesperadamente apascentar a feérica antes que ela cometesse um erro grave. Entendera o que Saito Hajime dissera. Sabia quais as reações de Shēnxiù Qī. E temia que ela acabasse matando a todos por ali.

As contenções de seus feitiços eram fortes, mas não seriam capazes de deter o poder de Shēnxiù Qī se ela ficasse descontrolada.

"Shēn, por favor, por favor, pare! Hajime está apenas blefando, blefando!"

Um calafrio percorreu a espinha dorsal de Choo-Kheng, fazendo-a estremecer da cabeça aos pés, quando Shēnxiù Qī baixou a vista para o seu rosto. A feérica que havia se tornado uma exímia Capitã e Mestre de Armas não estava mais ali, nem a jovem introvertida e silenciosa, que gostava de passar as horas vagas em meio a livros e estudos.

Os olhos de Shēnxiù Qī estavam vidrados e escuros, mal se podiam enxergar as escleróticas brancas. Era como se todo o globo ocular houvesse sido tomado por um abismo negro salpicado de minúsculas estrelas. A jovem havia caído na auto oclusão e o que ali estava era uma personalidade psicopata e obscura, era o próprio Cão Número Nove reencarnado.

A mesma apreensão foi sentida por Azriel, com o seu estômago afundando quando Shēnxiù Qī subiu os olhos para ele. Era como olhar para um fosso profundo, em que toda a luz era tragada pela escuridão.

Aquele ínfimo instante da troca de olhares entre eles foi o suficiente para Azriel vacilar em sua certeza... aquela pessoa ali jamais poderia ser Rigel... jamais poderia ser a sua menina, o seu Pequeno Sol!

Shēnxiù Qī voltou-se para Choo-Kheng, que se afastara em um passo, só então notando as vestimentas negras do Cão de Caça que a jovem vestia.

No dialeto de Hagakure, Shēnxiù Qī proferiu a sua sentença contra aquela a quem considerava uma mãe e verdadeira amiga.

["Yeoh, você me traiu."]

Como se uma mão invisível esmagasse o seu coração, Choo-Kheng se afastou com os olhos rasos d'água. Desde o começo ela sabia que estava traindo Shēnxiù Qī, intrometendo-se numa particularidade que ela fazia questão de manter oculta. Tudo o que queria era saber sobre a vida pregressa da jovem feérica que recebeu em seus cuidados quando ainda era apenas uma criança. E julgava que a garota merecia ter de volta a vida que lhe fora roubada.

Queria entender o repúdio dela à própria família. Mas agora, naquele exato momento, percebeu o grave erro que cometia... Ela havia julgado e condenado a menina que conhecia há séculos, dando total credibilidade aos estranhos que ela apenas conhecia por histórias... e pela péssima fama.

Ela havia desdenhado e desacreditado o drama e a tragédia vividos por Shēnxiù Qī em sua infância. Somente a feérica sabia o que havia se passado e cabia a ela o justo julgamento.

Ela apenas não queria que sua família a descobrisse viva. E nem essa vontade Choo-Kheng respeitou!

 E nem essa vontade Choo-Kheng respeitou!

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