Ravih de Cravo e Rosa

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Ravih pairava sobre o ar acima das árvores. Os pensamentos começavam a se ordenar na consciência, que parecia um nevoeiro, até se transformar em sons de carruagens, cavalos, passadas e soluços de um choro mortíl. Uma luz brilhava em algum horizonte, ele não conseguia distinguir de qual direção vinha, não sabia em qual orientação estava, tentou abrir os olhos, mas não conseguiu, sentia como se seus olhos esfriassem como a ponta do aço em brasa sendo modelado em espada, colocado debaixo d'água para trabalho de ferreiro. Alguns segundos depois, sua consciência já tinha retornado completamente. Apenas franziu o cenho, emitindo um gemido com a boca fechada.

— Ravih! — gritou Celsius.

Ravih levantou-se lentamente e sentou à borda da cama, com uma mão levantada como se protegendo da luz do sol, não havia percebido que ainda estava com os olhos fechados. Sentiu, num baque, alguns braços o entornando e pôde ouvir a voz de seus amigos. Mako inclinou a cabeça na quina da porta em direção aos adultos que estavam na cozinha a poucos metros.

— Senhor Gimba! — gritou. — Ele acordou!

O velho Gimba gesticulava, com uma vasilha de chá na mão, num súbito pulo, correu em direção ao quarto em que estavam.

— Ravih, eu... eu... — disse Hanna, se engasgando com as palavras, com olhos vermelhados de quem já havia chorado muito.

— O que aconteceu? — perguntou Ravih.

— Você... entrou no rio e — hesitou —, eu, eu não sei, você teve uma espécie de convulsão enquanto estava debaixo d'água — disse Celsius, soando ainda, um pouco assustado.

— De repente, você foi lançado à beira do rio, como se estivéssemos no mar e uma onda expulsasse seu corpo — disse Mako, tomando a fala.

Ravih passou a mão sobre os olhos, buscando em sua mente as últimas lembranças, mas um nevoeiro tomou conta de seus pensamentos.

— Para de nos assustar, durão — disse Hanna, tentando fazer uma piada, enxugando seu rosto com a palma da mão.

Ravih abriu os olhos e a luz no oriente se apagou, todos no quarto ficam mudos por um instante, o velho Gimba deixou cair a caneca de chá de ervas que segurava, encarando Ravih.

— Que foi, gente? — perguntou Ravih.

— Seus olhos... tem algo errado com seus olhos... — disse Mako.

— O que há de errado com os meus olhos?

— Saiam de minha casa, uma carruagem vai levar vocês pra suas casas, tem algo nos olhos desse garoto, tá amaldiçoado? É uma distorção? Saiam agora, que a bênção me proteja — disse o velho Gimba, voltando ao seu natural.

— Ravih, seus olhos estão vermelhos — disse Mako.

— Eu estava mergulhando... — disse Ravih, lançando os ombros para cima, como quem teria a explicação lógica.

— Ravih, estão incrivelmente vermelhos — disse Celsius, achando graça na inconformidade. — Você está parecendo um minguante das antigas histórias.

— Eu gostei — disparou Hanna.

— Saiam daqui, agora! — gritou Gimba, pegando os garotos pelo braço e levando-os até a porta. Mako encarou o velho, procurando o senhor preocupado que estava com eles há poucos instantes e caminhou sozinho até a saída.

Gimba era um dos senhores de feudo da região de Cravo e Rosa. Um velho ranzinza que morava sozinho, seus filhos moravam na cidade grande e raramente vinham visitá-lo. Todas as crianças da região adoravam importunar o velho, roubavam galinhas, passavam trotes, gritavam apelidos à distância e, apesar da casca grossa, o velho Gimba inconscientemente gostava dessa perturbação. De certa forma, esses eventos traziam vida à sua fazenda e afastavam a tristeza de um velho só, no final de sua vida.

Aspirante à ObliteraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora