Capítulo Dois

92 18 0
                                    

— Anos atrás você demoraria uma ou duas horas para acertar o alvo.

Joaquim olhou para o céu nublado, e desejou que o treinamento estivesse acabando. As nuvens amontoadas umas nas outras davam o aspecto que ferro choveria sobre eles. Havia acertado todos vinte e quatro alvos que Clemente montou para ele no começo da manhã, quando o sol ainda esquentava sua pele e a água das poças não era tão fria.

— Anos atrás — Joaquim rebateu — o arco era pesado demais.

Agora o arco é perfeito para ele.

Cinco anos atrás tudo em Joaquim era desajeitado: sua postura, seus sentidos, seu andar...

Clemente o ensinou bastante.

Só não o havia ensinado como deixar de sentir saudade da ausência da sua verdadeira família.

— Vai chover. —Avisou.

— Vamos entrar. Retire as flechas e depois tome banho.

Joaquim resistiu a vontade de dizer "Sim, pai" para Clemente. Só houve uma vez em que ele fez isso e quando as palavras deixaram sua boca, Clemente o agarrou pelo braço com força e disse severamente:

— Não sou o seu pai. Me chame pelo nome.

Joaquim tinha doze anos quando aconteceu. Ele jamais esqueceu, e jamais perguntou o porquê.

Quando retirou a primeira flecha do alvo, ele desejou perguntar, finalmente.

Quando as demais flechas foram retiradas, seus braços estavam doendo e a chuva já estava forte. Era outono em Valência, mesmo que Clemente tenha dito que não estavam na época para tal estação. Isso porque o reino era encantado. Todos os eram. Valência estava no outono, isso quer dizer que os outros reinos estariam em estações diferentes. Menos Sinos e Sinka, que compartilhavam as estações.

Ensopado, Joaquim deixou a coletânea de flechas debaixo do telhado e tirou a roupa, ficando apenas com seu calção de baixo. Jogou as roupas em um canto e foi para a chuva de novo, aproveitando cada gota de água que caía no seu rosto e no seu corpo, e sentindo o vento frio na sua pele, os seus cabelos no rosto, seus pés na lama.

Desde que conseguia se lembrar, Joaquim adorava a chuva. Talvez a chuva tenha sido duas coisas para si: sua amiga e sua inimiga. Era sua amiga quando o colocava para dormir, o som da chuva nas folhas e na terra o acalmava, uma canção de ninar que ele tomou para si noite após noite depois que terminava de chorar no canto. Mas também sua inimiga quando chovia com raios, o deixando ainda mais encolhido no canto, ainda mais assustado, impedindo que conseguisse dormir.

Seus dedos se fecharam contra as gotas.

Elas escaparam por entre seus dedos.

Ele teria que se acostumar com isso.

— Joaquim! — Clemente gritou de dentro da casa deles.

O pequeno chalé de Clemente era bem-organizado e escondido, um pouco distante da aldeia, um pouco longe de tudo.

— Estou indo!

— Logo temos que sair!

— Estou indo! — Ele gritou de novo. Ele sentiu que a água da chuva tinha limpado sua alma. Podia se esquecer das dores que o afligiam por um momento.

O caminho estava um lamaçal, mas nada que os atrapalhasse por muito tempo. Joaquim estava com a aljava às costas e o arco também e, ao seu lado, Clemente estava com uma sacola que continha a pele que eles tinham conseguido. Na cintura dele, Joaquim sabia, havia uma adaga.

— Vamos demorar a voltar?

— Espero que não — Clemente respondeu. — Ainda à noite temos que trabalhar.

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora