Capítulo Seis

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Ninguém havia dormido direito aquele dia.

Na verdade, eles não dormiram. O rei ordenou que só se pudesse dormir depois da ida da princesa. Ela ficaria em Valência por três dias, seriam três dias sem pregar o olho. Haveria o baile hoje, depois a estadia dela seria pacífica. Pelo menos foi isso que ele ouviu dos outros.

Enquanto ajudava Maria e outra mulher com as panelas, ele ouviu alguns passos chegando até eles. Passos de sapatos de verdade, não aqueles simples que os empregados usavam e que não fazia barulho algum.

— Você — o homem de bigode apontou diretamente para ele —, venha comigo.

— O que está acontecendo? — Maria perguntou antes que qualquer um pudesse dar um passo para fora da cozinha.

— Ele vai auxiliar o café da manhã.

Aquilo o deixou extasiado de animação. Largou a faca e pegou um pano para limpar suas mãos o melhor que conseguia. Infelizmente, naquela manhã, ele havia ajudado alguns homens com carvão e sujara suas unhas e por entre seus dedos e não queria largar agora.

— Por que ele? — Maria perguntou. Ela não estava tentando ser grosseira, estava apenas preocupada, ele notou isso pelo tom de voz dela.

Estava sempre dizendo que auxiliar nas refeições era algo complicado e que ele era muito novo.

— Ele pediu e como temos que escolher constantemente, apenas aceitamos. Agora venha, tem roupas para você.

Ninguém havia recebido roupas antes para auxiliar em alguma refeição.

Por causa da princesa, ele logo pensou.

Se sentiu satisfeito por esta oportunidade ser sua e, por mais que visse que alguns outros queriam estar em seu lugar, se sentia feliz por não ser assim tão gentil para doar sua chance. Ele não faria isso mesmo se algum deles se ajoelhasse diante de si e implorasse.

Subiu as escadas atrás do homem e o acompanhou até um pequeno espaço que não se podia chamar de quarto. Era apenas um espaço com uma bancada onde tinha uma pilha de roupas. Quando ele as tocou, se sentiu mal por seus dedos estarem sujos. Eram macias, cheirosas e muito belas. Sua camisa, que tinha botões, era branca. Sua calça era preta e seus sapatos lustrosos.

— São belas — disse para o homem, que, surpreendentemente, sorriu em compreensão à admiração dele.

De todo o seu constrangimento de sequer tocar nas peças que lhe foram dadas.

— De fato, são. Vista-se, estarei esperando por você para lhe auxiliar.

— Espere — disse antes que o homem saísse —, como devo chamá-lo?

— Lipe. Me chame de Lipe.

— Sim, senhor Lipe. — Sorrindo, ele virou-se de novo para as roupas e decidiu vesti-las logo.

— Então se um deles deixar cair, seja o que for, um guardanapo, um talher, você deverá pegá-lo e substitui-lo imediatamente. Compreendido?

— Sim, senhor — essa havia sido sua resposta por doze minutos desde que se encontrara com Lipe.

— E não corra — Lipe repetiu pelo que parecia ser a décima vez. — Não se deve correr. Você não está fugindo de nada, certo? Ah, diga-me, me contou o seu nome?

Antes que pudesse falar, a família real apareceu para o desjejum. Ou melhor, apenas a rainha e os dois filhos. Ele não viu o rei.

— Bom dia Vossa Alteza. — Lipe fez uma reverencia e logo ele o imitou, murmurando as mesmas palavras.

Seu cuidado para não gaguejar era gigantesco.

Logo o homem se dirigiu aos príncipes e ele teve que fazer o mesmo, estava aprendendo como deveria fazer com Lipe e não erraria.

Foi quando murmurava para os príncipes que ele o notou. O príncipe Érico. Havia algo de errado, ele percebeu.

Algo de errado não com o príncipe, mas consigo. Precisou se corrigir na sua cabeça. Seu nervosismo estava quase desaparecendo, pois estava se convencendo de que aprendera as regras sem nem um problema, não havia nada com o que se preocupar. Até este momento, com essa pessoa. Havia várias pessoas lindas na realeza, mas o príncipe Érico, supôs, ultrapassava todos eles sem o mínimo esforço. Os olhos do seu irmão mais velho eram azuis, belos azuis, mas os dele eram verdes e simples, nem tão grandes, nem tão pequenos, mas brilhantes como o sorriso que ele deu quando recebeu o bom dia. Aquilo fez o seu estômago voltar ao embrulho de antes, ao nervosismo. Não era apenas o rosto do príncipe que o encantou, era também o modo como ele estava naquele momento: nervoso. Tentava disfarçar, mas ele notou o nervosismo na ponta dos seus dedos, que estavam entrelaçando uns com os outros e, quando sua mãe estava prestes a notar esse ato, ele parava e sorria.

Quando se sentaram, ele tomou seu posto perto de uma das paredes, que, para sua felicidade ou seu desapontamento, ficava em frente à cadeira que o príncipe estava sentado. Sua mente trabalhou depressa. Ele não podia sair dali, tampouco poderia encarar o príncipe. Lipe havia repetido várias vezes que, assim como correr, encarar alguém tão deliberadamente, era falta de educação e que o rei se zangaria com ele. Coisa que ninguém queria.

Depois que Alessi desmaiou e se foi, todos haviam criado preocupações extras. O que ele achava injusto.

Se alguém não come, vai desmaiar.

Se alguém não dorme, vai desmaiar.

Se alguém trabalha por mais de um dia sem parar, desmaia.

O problema não era que as pessoas fossem fracas, o problema é que estavam dando a elas mais coisas que o necessário, as fazendo ficarem sobrecarregadas e, ao invés de encontrarem forças para continuar, encontravam a exaustão.

Sua respiração ficou ruidosa e suas costas começaram a suar contra a parede. Tratou de melhorar sua postura e conter suas respirações, começado a respirar pelo nariz e não pela boca, e seu queixo trincou, para que assim conseguisse manter a concentração. Seus olhos, vez ou outra, perdiam a concentração de focarem na parede e iam direto para o cabelo do príncipe, que é louro, mas não um louro calmo. Era rebelde, porque parecia quase como ouro e cobre, como se não quisesse ser uma coisa só, ou não devesse ser. O príncipe tinha uma palheta de cores próprias. Verde-intenso para os olhos, que encaravam apenas para o começo de um desconforto, depois, desviavam. Louro-rebelde para o cabelo. Branco-rosado para as bochechas e para as orelhas. Rosa-delicado para os lábios e...

Parece-se com uma pintura.

Quando saiu do quarto, depois de se vestir, ele havia visto a pintura de um homem apoiado em um sofá verde com almofadas brancas que, na sua opinião, era bem feia. Mas o que mais o capturou na pintura foi o formato do rosto do homem, que parecia ser angelical. O do príncipe é assim também, angelical.

Não sabia por que pensava essas coisas, mas agradeceu a si mesmo por não estar dizendo nenhuma delas em voz alta. Seria humilhante e ainda mais, o príncipe poderia mandá-lo para longe também, olhando-o com desdém como aquele primeiro mordomo que apareceu na cozinha.

A cozinha...

Ele pensou em Maria e em Janete, pensou se elas estariam falando sobre ele ou desejando saber como estava se saindo na sua primeira vez auxiliando a refeição da família real.

Antes que sua mente corresse em outra direção, a porta abriu-se de novo e o rei entrou. Seus filhos se levantaram para recebê-lo e sua mulher também, só quando o rei sentou-se à cabeceira da mesa, os demais fizeram o mesmo. Seu coração gelou quando o rei olhou diretamente para ele, e, por mais que tenha sido por um único instante, pareceu uma eternidade em que sua respiração ficou presa e seu coração parou de bombear. Sem respirar, sem se mexer, foi assim que ele ficou.

O rei desviou o olhar para comer.

Sua respiração saiu com cuidado.

E foi assim até a porta abrir de novo.

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora