A dor de barriga parecia-se, sendo mais preciso, como se alguém estivesse à sua frente, enfiando a mão em seu estômago e procurando o que extrair. Só que, para a sua surpresa, a dor sumiu tão depressa quanto chegou. A mão que apertava seu estômago e seus intestinos havia sumido.
Olhou para Érico, ao seu lado, e percebeu que a dor dele também sumira.
— Tudo bem? — Perguntou, receoso de que a dor voltasse ao menor movimento, como falar.
— Tudo. Onde está Joaquim? — Eles não precisaram levantar-se para procurá-lo. Joaquim apareceu diante deles de repente.
— Temos que ir embora. Agora!
Ele estava, Lipe notou, com raiva. Com raiva deles? Ora, que culpa eles tinham se passaram mal de tanta dor? Não era algo que se podia culpar alguém. Ele decidiu não discutir, queria mesmo sair daquela casa, que se tornou sinistra e podre. Seus joelhos estalaram quando ele levantou e ajudou Érico a levantar-se também. Pegaram seus sapatos à porta, Joaquim ajeitou a mochila nos ombros e saiu primeiro, Érico foi depois. Lipe, entretanto, ficou. Ele decidiu dar passos para trás, porque o silêncio ali lhe incomodava, e sua curiosidade sempre vencia; se aproximou da cozinha que era iluminada por uma luz distante da lareira, e ao se aproximar notou algo que com certeza não queria ver: aquela senhora que lhe servira diversos pratos de comida estava agora jogada em sua própria bancada, de joelhos, com a cabeça cortada ao meio por uma cerra, e seu sangue escorrendo pelos seus lados, e seus braços estavam congeladas ao lado do corpo. Havia sangue no chão e escorrendo pelas paredes também. A dor em seu estômago voltou, mesmo que menor. Ele saiu correndo, sabendo que aquela imagem lhe traria pesadelos nas próximas noites.
Não perguntou a Joaquim o que havia acontecido. Ele não estava com uma cara muito amigável para se iniciar uma conversa. Andaram durante a noite quase toda. Soube que estava chegando em Áurea porque as árvores deixaram de ser mortas e com folhas amareladas para serem cheias e verdes. Em Áurea, era primavera.
Quando finalmente viram os portões de Áurea, que eram brancos e gigantes como árvores, Lipe pediu que eles parassem um pouco.
— Estamos quase chegando — Joaquim rebateu, não parando de andar.
— Espere mesmo assim. Por favor. Não entendo o porquê está chateado. Não queríamos que aquilo tivesse acontecido.
Joaquim não o olhou e aquilo deixou seu coração um pouco mais dolorido.
Parecia importante que ele o olhasse enquanto ele falava, porque os dois tinham desenvolvido aquela conversa sobre sobreviver logo depois de ele ter dito que os largaria quando chegassem a Mifram. As mudanças com Joaquim eram rápidas e ele tem se esforçado para acompanhá-lo em tudo que falava e tudo o que fazia, notando coisas que o incomodava e coisas que o deixava sorrir, alegre ou desdenhoso. Era seu trabalho no palácio notar o que agradava e o que deixava de agradar os outros, por isso se esforçava, mas se esforçava, principalmente, porque queria ser seu amigo.
— Não estou culpando vocês — defendeu-se.
— Parece que está — Érico disse cruzando os braços, na defensiva — não falou conosco durante quase uma hora.
— Ah, me desculpe, eu apenas estava pensando que uma mulher quase me matou e salvei a vida de vocês. Pela segunda vez.
— Também salvamos sua vida — Lipe não tinha intenção de parecer grosso, simplesmente não conseguiu se segurar pelos gritos de Joaquim.
Ele apontou para Érico.
— Você me meteu nesta situação miserável. Eu perdi o meu pai por sua causa. Se não fosse tão egoísta teria perdido a droga do seu baile e ficado no quarto como sua mãe mandou! Assim não teria arrastado ele — agora seu dedo apontava para o peito de Lipe — também. Estaríamos todos fora disto!