Ele não soube explicar o que lhe sumira primeiro: as palavras, a confiança nas pernas ou a possibilidade de se mexer.
Lá estava Lipe, parado à porta, o observando como se não o conhecesse. O mesmo Lipe que ele viu em Hend ou perto do Oceano Limbo, quando levaram a sereia até ele. — E mesmo assim, Lipe o olhava como se ele fosse um completo estranho.
— Lipe... — Para sua surpresa, foi Érico, ao seu lado, que murmurou o nome dele.
Desde que o conhecera, Joaquim sabia que Lipe sentia uma enorme admiração por Érico, uma imensa devoção. Era o seu príncipe, Lipe afirmara mais de uma vez. Não pode deixar de imaginar a dor que Érico sentiu ao olhar para os olhos marejados de Lipe. Que, por um instante eram cheios de tristeza e dor sem fim, até se transformarem em raiva profunda.
Ele sacou algo do bolso e veio até eles, parando a poucos centímetros do seu corpo. Lhe estendeu uma carta amassada nas pontas e com marca de dedos na parte inferior, onde ele devia tê-la segurado dezena de vezes.
— Sua carta. — Seus dentes estavam trincados de raiva.
Lentamente, Joaquim pegou o papel e a leu.
Seus lábios secaram enquanto ia absorvendo aquelas palavras tão fervorosas sobre aquela confissão de sentimentos — confissão que não era dele.
Encarou Lipe antes de dizer:
— Eu não escrevi isso. — E dizer tais palavras, mesmo sendo verdadeiras, pareceu piorar a situação.
A voz de Lipe estava estridente, descrente.
— Como não escreveu? Eu vi você a deixar na biblioteca. Era o único que sabia onde eu estava!
Antes que Joaquim pudesse negar, a carta foi arrancada da sua mão. Érico se pôs a ler. E leu duas vezes antes de encará-lo com o mesmo olhar descrente de Lipe.
— Escreveu isso?
— Não! — Sua voz retumbou — Não escrevi carta alguma! Lipe, eu nunca... Eu nunca...
— Nunca escreveria uma carta assim para mim? — Questionou. E as palavras soaram tão roucas que não pareceu a voz dele, do garoto animado e cheio de bondade. Parecia-se com a voz de um velho, rouco de raiva e tristeza.
Joaquim olhou desesperadamente para Érico, querendo que ele lhe ajudasse a explicar. Mas como poderia se nem mesmo ele sabia o que estava acontecendo? Tentou respirar fundo, reunindo as informações que tinha até agora, querendo montar um quebra-cabeça coerente com as palavras de Lipe e a explicação do que ele acabou de presenciar. Entretanto, parece que só conseguia encará-lo, ver escorrer a tristeza nele como se fosse chuva. Primeiro seus olhos caídos, cansados, depois seus ombros igualmente curvados. E por fim, a falta de um sorriso, que apagava a imagem alegre de Lipe que Joaquim já conhecia.
Simplesmente não sabia que poderia deixar alguém tão triste, parecia ser impossível contando que nunca quis machucá-lo.
— Não escrevi a carta — ouviu-se dizer, incerto das suas palavras. E mesmo assim, continuou. — Juro que não. Mas, Lipe, eu gosto de você. Gosto mesmo. O que você viu aqui...
— Não irei contar a ninguém — garantiu.
— Sei que não vai. O que quero dizer é que essas palavras são tudo o que eu não consigo dizer. Eu não conseguiria escrevê-las mesmo se passasse dias trancado naquela biblioteca. Me desculpe.
— Não sei por que está pedindo desculpas então — Lipe disse, e parecia amargo quando riu — acho que o culpado fui só eu. Mas, se você não deixou a carta, quem a deixou, afinal?