Capítulo Quarenta e Um

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Parecia que estava caindo diretamente do céu, como um anjo. Então acertou o chão e algo em si se quebrou, a dor percorreu seu corpo como um enorme raio. Veio das pernas, onde a flecha ficara ainda mais funda em sua carne, e depois até a cabeça, onde o choque foi maior e quase o deixou inconsciente — ele preferia ter desmaiado, pelo menos conseguiria fugir da dor por alguns instantes.

Ele encarava o vasto e estrelado céu. Quis rir, por um instante, depois quis chorar de raiva. Parecia que depois que fizeram aquele juramento, todo o mundo estava contra eles, lhes impondo mais dificuldades, mais dores. Se aquilo era um teste, estava ficando furioso com ele. Estava furioso consigo, primeiramente. Devia ter sido mais ágil, devia ter seguido Érico no segundo em que ele agarrou a corda, mas não podia correr o risco, tinha que colocar ele lá.

Ouviu a voz do homem que trouxe o barco e sabia que era dele porque era a única voz que não conhecia.

— Temos que ir agora mesmo! Ninguém se atreva a descer!

Depois, a voz de Érico, furiosa como o demônio.

— Ele ainda está lá! Eu o quero aqui! Vou trazê-lo até aqui!

Não. Não venha. Não deixem que ele venha aqui!

Essas palavras pareciam não conseguir atravessar seus lábios. Nenhum som saia de si, talvez estivesse gemendo, mas não tinha certeza. Tudo era uma incerteza, menos a dor, e às estrelas. Essas duas coisas eram reais. Suspeitou que as suas lágrimas, que escorriam pelos lados, também eram. Estava mesmo chorando.

Com a mente enuviada e mesmo assim pensou que estava no chão igual estivera quando o rei o empurrou da escadaria, e ele caiu vários degraus. Sua cabeça bateu tantas vezes que ele perdeu a consciência no que pareceram ser segundos após a queda, não havia chegado ao chão ainda, disso tinha certa. Seus braços e pernas eram uma confusão, parecia que estava desesperado para torcê-los. Seja lá o que ele fosse, não era impedido de ser machucado, apenas de morrer, a dor poderia ser das mais excruciantes — como agora — e mesmo assim, nada viria para salvá-lo, nenhuma força divina o ajudaria como o ajudou ao se jogar no mar ou com a bruxa na floresta.

Joaquim esticou o pescoço o melhor que pôde para olhar para trás. A dor que o envolveu começou atrás dos seus olhos, era ardente e aguda, e se esticou até sua nuca. Sentiu a realidade querer escapar e a inconsciência lhe tomando, aos poucos. Mas ele conseguiu ver o que queria: Os soldados de Sinos estavam parados perto dele, tão perto que ele conseguia ver os cascos dos cavalos afundando a terra molhada.

Engoliu em seco apenas uma vez antes de ver o rosto de um soldado aparecer, substituindo o céu estrelado da sua visão. Era um rosto semicoberto pelo elmo negro e arranhado. O rosto era duro e havia um sorriso triunfante nele. Um sorriso apavorante.

— Estou com um — gritou para os outros.

Era o som de sua sentença.

Ele fechou os olhos e mordeu o lábio enquanto era erguido, a dor fazendo com que suas pernas vacilassem. Seu corpo queria ficar tenso, mas estava mole, era quase como se seus ossos houvessem sumido de repente, apenas a mão enorme do soldado em seu pescoço havia o mantinha de pé.

Seus olhos abriram-se um pouco, apenas fendas, os cílios ainda grudados uns nos outros, e ele viu Érico sendo segurado por Tayson, que gritava com ele, gritava algo que Joaquim não conseguiria descobrir mesmo que se esforçasse. Sua cabeça não registrava mais que a dor. E ela parecia vir de todos os lados, crescendo, crescendo, esperando o momento certo para dominá-lo. Desejou que fosse logo.

Viu Lipe chorando, se segurando à borda do barco, se impedindo de pular. Conseguia saber que havia coragem nele o suficiente para que pulasse, só estava resistindo à vontade porque sabia que seria o que Joaquim gostaria que ele fizesse. Percebeu então que sua boca se movia, nenhum som saia, mas conseguia distinguir os movimentos que sua boca fazia, eram lentos, eram quase imaginários.

Fique. Fique aí.

Então, uma ventania forte começou. Ela trouxe consigo o cheiro de maresia e de terra molhada. Joaquim fechara os olhos, finalmente. Sabendo que aquele seria os cheiros que se lembraria depois, um pouco antes do rei ordenar que ele fosse colocado guilhotina para que cortassem sua cabeça ou fosse chicoteado até que seu sangue formasse uma poça enorme aos seus joelhos curvados. Talvez o rei fizesse com ele o mesmo que fazia com a esposa, seja o que fosse, o mataria lentamente e haveria mais dor. Era algo que o apavorava como nunca. Se lembrava com clareza dos gemidos sofridos que vinham do quarto que o rei a deixara, e ele imaginou como poderia ajudá-la, curá-la, somente agora se perguntava no que estava pensando. Não podia ajudar ninguém; estava óbvio que não conseguia salvar nem a si mesmo. Se sentia fraco, sua alma se sentia exausta e fraca, parecia que as fibras do seu corpo, sua vontade de viver estava o deixando lentamente, como se se derramando junto ao seu sangue. Aquela aberta em sua perna, era aquilo que estava o extinguindo.

A ventania não parou. A mão em seu pescoço o apertou e ele perdeu o ar.

O homem ria e cuspia enquanto o fazia.

Os outros atrás dele riam e comemoravam. O barco se afastava.

Então o vento pareceu sólido de repente. Como uma parede invisível. E jogou o homem — e ele mesmo — que o segurava para longe. Seus pés saíram do chão, seu corpo rolou na terra molhada, sabia que estava gritando de dor. Seu braço havia entortado de um jeito que não deveria e agora um ferimento se abrira em sua testa, e sangrava manchando sua visão. A última coisa que viu antes de desmaiar foi um mar de soldados caídos, atordoados, se perguntando o que havia acontecido, e cavalos relinchando, resistindo aos puxões nas rédeas e fugindo, não parando nenhuma vez quando seus donos ordenavam. Então Joaquim olhou para à direita, onde só havia árvores, o lugar onde Lipe havia ido pegar aquelas folhas para um chá. E viu um garoto que não conhecia, e ele flutuava, estava a centímetros acima do chão e a floresta podia ser vista através dele. A criança sorria enquanto a ventania balançava os galhos e as moitas, o garotinho, entretanto, não se mexia. A ventania não o afetava.

Joaquim fechou os olhos e se entregou ao vazio. 

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora