Capítulo Cinquenta e Um

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Quem falava era ele, era a voz dele.

E mesmo assim, não era.

O Érico que falava com a rainha tinha lábia, cheio de sorrisos e pedidos sinceros de desculpas onde culpava nada mais que seu impulso por justiça. Ele sabia o que falar e não ficava corado, suas mãos estavam postas nas costas, e os dedos não estavam se entrelaçando como sempre faziam quando Érico ficava nervoso. Quando seus olhares se cruzaram, Joaquim olhou fundo naquele verde brilhante e ficou chocado ao perceber que, de fato, não era Érico no controle do próprio corpo, era Bico, que havia se aproximado dele sorrateiro e simplesmente se dissipara para dentro. O verde agora era totalmente domado por uma esperteza de outra época, porém, vivaz.

— Meus amigos tentaram me impedir — apontou para o grupo que era barrado pelos guardas, impedindo que se aproximassem demais —, não é culpa deles que eu tenha agido de modo tão imprudente. Ofereço, como desculpas sinceras, Vossa Majestade, os prisioneiros que domamos enquanto ainda estavam no mar. Saqueadores.

Os homens começaram a tremer ao lado de Joaquim. A mulher estava calada, impassível, mas seu rosto havia tomado um tom pálido doentio.

— Meu reino é sedento por justiça, Príncipe de Hend. Posso compreender sua necessidade de correr direto para o perigo depois do que houve em seu lar. Os prisioneiros serão levados para às celas. E vocês serão levados para um lugar para que... Quantos de vocês estão feridos?

Érico — Bico — respondeu imediatamente, sempre em tom cordial, como se não quisesse despertar de novo o lado sedento de fogo da rainha.

— Dois. Meus melhores amigos. Um deles foi atingido por uma arma e o outro se machucou quando embarcávamos em Sinos. O rei... Nos perseguiu. Sinto em dizer.

O rosto de desgosto da rainha era como uma pintura muito bem-feita. Joaquim observou as linhas da sua testa e abaixo da sua boca. A raiva contida ali era... mortal. Não havia outra palavra, ele achava, para definir aquela mulher sentada ao trono, cheia de joias e confiança; ela era mortal e tinha a postura tão ereta quanto uma espada.

— Uma carruagem os levará onde deverão descansar e, friso, príncipe Érico e espero que obedeça a minha ordem, só deve sair quando eu solicitar sua presença e a dos seus amigos no meu palácio.

Todos, inclusive os piratas, balançaram a cabeça em concordância. Era impossível não o fazer.

Avisaram que eles ficariam em uma cabana na floresta — a lembrança dessas palavras juntas o trouxe sensações boas e ruins, uma oscilando contra a outra ao se lembrar do seu pai e dos anos anteriores — e permaneceriam lá até que um dos criados fosse avisar que eles deveriam ir ao palácio.

A floresta estava quente e verdíssima, as árvores pareciam rasgar o céu e os espaços dos galhos deixavam à mostra o azul cintilante do céu — não parecia que, meia-hora outra atrás eles tinham presenciado um homem ser queimado vivo e visto sua pele assar e cheirar como algo podre.

— Fazia muito, muito tempo que eu não possuía algum corpo. — Bico comentou, ainda no corpo de Érico. Ele sorria de orelha a orelha, os olhos ainda tendo aquele brilho louco. — Esqueci da sensação de sentir coisas na pele... e de ser morno. O que é essa sensação na boca do estômago? Parece que vou desmaiar a qualquer momento.

— Fome — Aloisio respondeu, impressionado. Dentre todos, ele parecia o mais próximo a sacar um pergaminho e uma pena para fazer diversas perguntas para Bico. — Uma necessidade humana, assim como beber água e dormir.

— Interessante... E o sol na pele... incrível! Poderia ficar no sol o dia todo.

Lipe riu no seu ombro e Joaquim o olhou, desconfiado. Calado, o questionou com o olhar.

— É engraçado, admita — sussurrou em seu ouvido.

Joaquim se limitou a sorrir e nada mais, ficou calado até chegarem à cabana que ficariam. Cabana era um nome inadequado para o que eles viram. Era um enorme chalé de madeira escura, com flores brancas na entrada, foi o que viram. A grama era verde-escura, da cor das folhas dos pinheiros, a porta era dupla e pesada e por dentro, o lugar estava impecável.

— Ficaremos aqui? — Tayson murmurou.

Como se esperando aquela pergunta, uma jovem apareceu. Ela tinha cabelos louros amarrados perfeitamente para trás, o avental era branco e cinza. Ela parecia jovem, mas não tanto quanto aqueles em Sinos, era uma jovem que tinha idade para trabalhar e parecia saudável; bochechas coradas, sorriso contido, quase infantil, e queimaduras de sol nas mãos e no nariz.

— A rainha me pediu que cuidasse de tudo para que fiquem aqui. — Respondeu — Eu e minha equipe cuidamos de tudo. Sou Katarina, aliás.

— É um prazer — Érico respondeu e, de novo, surgiu aquele sorriso demoníaco em seu rosto. — Príncipe Érico II, estes são meus amigos. Joaquim, Lipe, Aloisio e Tayson.

Eles acenaram em cumprimento. Ela fez uma reverência para eles. Tayson estava de boca aberta.

Um segundo após isso, uma outra garota apareceu pelo arco de madeira e se postou ao lado daquela e sussurrou algo em seu ouvido, depois, fez uma reverência para eles de novo — que manearam a cabeça, constrangidos — e se retirou.

— Seus quartos estão prontos. Há vinte e dois quartos aqui, onze na parte de cima, onze abaixo, onde os criados dormem. Mas, como não ficaremos aqui com vocês, todos os quartos estão livres e arrumados. Podem escolher o que desejarem.

— Por que não vai ficar? — Tayson perguntou, a olhando. A espada estava em sua mão esquerda e apontava para baixo. Ele não prestava atenção em mais nada. Até que piscou de repente e corou — Digo, por que você e sua equipe não ficarão conosco?

Katarina o analisou devagar.

— Precisam dos meus serviços no palácio. A rainha irá mandar um médico para cuidar dos feridos em poucas horas. É recomendável que se alimentem antes de sua chegada. À mesa está posta para o dejejum também, sigam-me.

A casa era silenciosa, mas não de um jeito ruim. Os barulhos da floresta o deixavam calmo, porque ele os conhecia desde sempre: pássaros empoleirados nas janelas, batendo seus bicos no vidro, galhos se partindo por causa das patas de algum animal, o vento assobiando por entre as folhas e chegando até eles.

Era uma sensação reconfortante estar perto da natureza e distante das pessoas. Pelo menos de algumas. Ele ainda queria Érico e Lipe por perto, e com isto, queria dizer o verdadeiro Érico, não Bico, que ainda o possuía. Ainda na carruagem ele perguntou quando largaria o corpo de Érico, e Bico simplesmente deu de ombros e disse que Érico estava dormindo. Isso o incomodou.

Uma coisa que ele não fazia há muito tempo era ficar na chuva. Desejou que o verão à noite trouxesse sua chuva, mesmo que abafada, por alguns minutos. Ele precisava sentir as gotículas de água acertando seu rosto sem se preocupar com seus ferimentos ou com os perigos que os esperam quando chegarem ao palácio, ou a Donvi. Queria esquecer que estava em perigo. 

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora