Enquanto se banhava, Lipe conseguiu saber a resposta para o porquê nunca saiu do palácio, finalmente.
Ele não sabia como. — Não tinha nada a ver com a simplicidade de encontrar uma porta para sair, ou o medo de escorregar em um dos degraus. Era mais complexo do que poderia soar. Passara a vida inteira entre quatro paredes, arrodeado de deveres e poeira, por pessoas que conheciam tão pouco do mundo quanto ele e isso estava bem, não havia a menor pressão de querer sair dos limites que lhe foram impostos, conseguia ver árvores, sabia a sensação do vento em seu rosto e o prazer que é ter a chuva no rosto. Só não sabia que precisava ser livre e sentir-se livre até estar e não saber o que fazer a seguir.
A liberdade era uma coisa gigantesca em suas mãos, e ele não tinha a menor ideia do que fazer com ela, de como usá-la. Por isso preferiu ficar nos limites do palácio, conhecendo o lugar e fazendo de tudo para ficar quieto, como ficava em Hend. Aqui não servia, não era requerido para assuntos domésticos. E mesmo assim, não saia, porque não fazia ideia dos prazeres que lhe aguardavam ou dos horrores, das inseguranças. Escolher não sair parecias ser sempre o mais seguro.
Quando saia para treinar, achava a sensação de correr e pular energética, como se seu corpo estivesse sempre faminto por aquilo e nunca se saciasse mesmo quando seus músculos ficavam duros de tensão, cansados. Esperava em sua cama pelo dia seguinte onde poderia encontrar Messina, lutaria, pularia, correria e ouviria as histórias que ela estava disposta a contar, o que acontecia sempre. Messina parecia gostar de treiná-lo, e ele gostava de ouvi-la conversando sobre tudo: armas, feriados, sobre Aurora, sobre as pessoas na aldeia e de como adoravam o feriado de junho.
Estavam em setembro, entretanto, e ali, a primavera estava quase indo embora. Seria verão daqui a alguns dias e Mifram daria início, dali a dois dias, a coroação de Aurora. Não mais seria Vossa Alteza; seria Vossa Majestade.
Ao chegar ao quarto de Érico, percebeu que ele já dormia profundamente. Joaquim estava ao lado esquerdo dele, com a mão em seus cabelos. Lipe deitou-se no lado direito e demorou alguns segundos antes que conseguisse achar uma posição confortável que não acordasse o rapaz do meio. Lipe sabia que estar no meio era melhor, porque lá não fazia frio de nem um lado. Érico merecia estar no meio agora.
Por sobre a cabeleira loura dele, Lipe cochichou:
— O que acha que acontecerá amanhã?
— Bem... Haverá uma cerimônia. Aurora comunicou que os outros estavam nos quartos, sendo tratados.
— Tratados como?
— Os cientistas de Mifram estão tentando algo, suponho. — O modo como sussurrou fez parecer que ele não queria pensar nisso, por isso Lipe mudou de assunto depressa.
Contou a Joaquim tudo o que acontecera desde que ele apagara. Não fez isso para que ele se sentisse culpado, para impor sua ineficiência, o fez porque eles não escondiam nada um do outro e, por mais que Joaquim escondesse sim, alguma coisa, Lipe não conseguiu pensar em usar suas palavras para ganhar o segredo dele em troca. Sabia que ele contaria quando estivesse pronto.
Pressionar atrás de segredos era como por uma espada no coração de alguém e estar pronto para pressionar até que um buraco se forme, porque, afinal, você quer aquele pedaço para si.
— Espero que coisas boas aconteçam logo — murmurou em meio ao silêncio.
E depois disso caiu no sono, mas ainda conseguiu ouvir Joaquim concordar com ele.
*
À mesa, Lipe se serviu de ovos, pães com manteiga, café e biscoitos salgados em forma de quadrado. Érico, ao seu lado, estava apenas com uma xícara de café intocável.