Capítulo Sessenta e Oito

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Aurora o encontrou na porta de trás da casa, que dava para um quintal malcuidado onde outrora houvera uma plantação de tomates. Havia também brinquedos de crianças feitos de madeiras, enterrados na terra congeladas. Roupas no varal, também congeladas. O vento sequer as balançavas.

— Essa sim é uma visão deprimente — comentara ela, chegando a ficar combro a ombro com ele. — Quantas crianças acha que moraram aqui?

Ele deu de ombros.

— Umas quatro. Há muitos quartos, mas só alguns têm decoração infantil.

— Concordo. É estranho pensar que o inimigo que pensávamos era na verdade uma vítima. Quando podemos dizer o mesmo sobre as pessoas e não sobre os reinos?

Érico não soube como responder.

A visão das roupas de crianças congeladas entorpeceu suas palavras.

— Não quero acreditar que o destino nos reservou isto — continuou ela —, porque acreditar nisso também significa que acredito que merecemos.

— E se alguns de nós merecer?

— Não pode estar falando sério.

— Pois estou. E se merecemos o que está acontecendo? E se... E se é isso mesmo? Destino maldito para todos nós; os merecedores. Os filhos errados.

Para sua surpresa, Aurora deu uma risadinha. Ele a olhou.

— Pode ter razão. Em parte. Filhos errados, hum? Nisso eu concordo. Consegue se lembrar de algum lugar, em algum tempo, em que quatro mulheres ficaram no poder?

Aurora sorria para a visão deprimente do lado de fora, não se abalando com o quão ruim a história final das pessoas daquela casa pudesse ter. ela era assim, Érico lembrava a si mesmo. Era feita de vidro, era delicada e cortante quando necessário. Aurora era uma rainha de uma terra de marfim, um material que dura para sempre.

— Não. — Respondeu — Não consigo me lembrar de algum momento nas nossas histórias onde só mulheres reinaram.

— Somos as primeiras.

— Acho que somos os primeiros de muitas façanhas. — Eu, por exemplo, sou um príncipe sem reino, amo duas pessoas e tenho um dedo a menos, não que isso vá ser registrado na história.

Ser o primeiro de muitas coisas não era o que ele esperava. Quando poderia imaginar que seria o primeiro em... Qualquer coisa? Era diferente do que ele imaginava, a sensação. Era desgastante, e havia uma pressão que fazia seus ombros encolherem como nunca havia acontecido.

— Concordo — A voz viera de trás deles.

Onde as outras mulheres estavam.

Era a primeira vez que Érico encontrava-se tão perto da princesa Kelly. Ela era bela, mas não como Aurora. Era mais uma criança do que qualquer um ali, mas a expressão dela parecia extinguir a infantilidade, assim como Tayson. Algo havia acontecido com ela, e não fora pouco.

— Princesa — ele maneou sua cabeça em sinal de respeito.

Kelly apenas o encarou, sem expressão certa em seu rosto.

Érico não conseguiu lembrar-se se havia um capítulo da princesa no diário que Bico fez. Não que ele fosse procurar. Já havia decidido que não leria mais aquele livro não importasse o quanto seu amigo fantasma exigisse. Eram os segredos daquelas mulheres que leu, além dos de seus outros amigos. Imperdoavelmente, não pode se esquecer das vezes que rira ao ler algo.

Como se escutando seu nome nos pensamentos de Érico, Bico apareceu flutuando sobre a cabeças deles.

Antônia gritou.

— Não acredito que sou tão terrível assim, Vossa Alteza — O menino disse, fazendo com que elas se afastassem do aspecto luminoso que ele era.

O que é isso?

Érico não pode deixar de rir ao ver a expressão indignada do menino. Ele poderia estar morto, mas ainda tinha sentimentos.

Érico apresentou o fantasma às mulheres, que, aos poucos foram se acostumando com a ideia de que fantasmas existem assim como feiticeiros.

— Achei que ver fantasmas era um dom — Aurora disse, apertando as mãos nervosamente em frente ao corpo. Érico não a conhecia tão bem ao ponto de saber que a vontade dela era colocar a mão no corpo de Bico para testar uma teoria: Sua mão sumiria ou o atravessaria sem sumir?

— Não. Fantasmas só aparecem para quem querem. São extremamente seletivos.

— Como os grifos — Teresa sorria para o menino. Pouco. Ela não era de sorrir muito. — Agora me diga, desde quando esteve escutando nossa conversa?

A risada infantil de Bico fez Érico ter de novo as lembranças das noites na biblioteca de Hend; os fantasmas poderiam rir à vontade, seja quão escandaloso for, ninguém os ouviria além dele. Enquanto isso, Érico sempre tinha que ser cauteloso aos seus passos, ou a rir. Ao contrário dos amigos, qualquer um poderia ouvi-lo.

— Desde sempre — respondeu ele, petulante. Havia erguido o queixo em sinal de pirraça. — Eu escuto tudo o que quero e vejo tudo o que quero! É muito divertido. Foi assim que eu consegui espionar vocês.

O arquejo delas foi em uníssono.

— Nos espionar? O que quer dizer com isso?

Bico não respondeu, começou a dar cambalhotas no ar. Sem dúvidas, querendo se mostrar para elas.

— Como se para um fantasma?

— Com espelhos de prata.

— Você tem algum aí? — O sorriso da rainha de Sinka era ousado, Érico não sabia dizer se ela estava brincando ou queria mesmo prender Bico em um espelho. — Não importa. Acho que posso pedir para o feiticeiro trazer um para mim.

— Ele é habilidoso, não é? Um pouco inclinado a hipérboles, mas habilidoso.

Eles entraram em uma discussão calorosa sobre Ryda, sem notar que Bico havia sumido novamente. 

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora