Capítulo Sessenta e Três

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Érico tomava a sopa como se temesse que a tigela fosse explodir em suas mãos em quaisquer minutos.

— Sou Ryda. Devia ter me apresentado desde o início. Sinto muito.

Érico se manteve calado, bebericando as colheradas de sopa, o que deu oportunidade para o homem falar mais.

— R-Y-D-A, sabe, como Rida. Mas com mais sofisticação... Sobre eu quase tê-lo matado... Minha magia não é a mesma há trinta anos. O mais esquisito é que você tenha sobrevivido! Não me entenda mal, de modo algum queria lhe causar mal, mas... É apenas uma teoria. Mas não achei que fosse acordar jamais.

— Poderia ter sido nosso juramento. — Lipe disse, prestativo.

— Ah, bem, pode ser. Sobre o que vamos conversar, meninos — Ryda esticara as pernas enquanto se sentava na poltrona do quarto. Mudara de ideia e cruzou uma perna sobre a outra. Ele parecia nunca parar de se mover, o que deixava Joaquim zonzo tentando acompanhar seus movimentos.

— Que tal sobre o fato de estarmos em um reino destruído? O que aconteceu? — Ele fizera aquela pergunta para Joaquim, mas tudo o que ele pudera oferecer foi um dar de ombros. Também não sabia de muita coisa.

Ryda suspirou e pareceu cansado pela primeira vez desde que Joaquim o conhecera, dois dias atrás. Também tinha ficado estupefato quando vira o homem usar magia, e ainda o surpreendia que ele a usasse de modo tão deliberado, para fazer surgir uma sopa ou fogo, ou simplesmente fazer com que as lascas de gelo que ficaram presas na janela derretessem lentamente.

Ryda estivera tentando mostrar que a magia dele era poderosa, que era algo perto de infinita; agora, que deixara suas mãos quietas sobre o colo, ele parecia um simples homem cansado.

— Estou em Verón desde que a caça aos feiticeiros teve início. Escondi-me junto a um colega. Ele era... O meu melhor amigo. Supreendentemente, ele era humano. Mas sabia quem eu era, e mesmo assim, me escondeu por dias. Senti-me culpado quando soube por ele que meus companheiros haviam sido exterminados. Ele tentou me consolar, dizendo que eu ainda era uma forma da minha espécie renascer. Ele estava certo, eu penso. Sinto saudades dele. Onde ele está, afinal?

Ele olhara para todos no quarto, como se esperasse que eles soubessem a resposta para aquela atípica pergunta.

— Não sabemos quem ele é — Lipe disse, ressentido. Suas bochechas coraram de culpa.

— Ah, mas conheceram, sim. — E então, ele focara seu olhar em Joaquim. Fazendo com que um enorme frio cobrisse seus ossos. — Ele o levou daqui. Clemente. Onde ele está?

Ouvir de novo o nome de seu pai deixou suas pernas fracas. Quase que ele se juntou à cama com Érico. Permaneceu de pé, por um milagre.

— Meu pai? — Arquejou.

— É. Clemente.

— Como assim... O que quer dizer com "ele o levou daqui"? Eu... Eu sou uma criança de Donvi?

O quarto recaiu em silêncio.

Sua mente trabalhou naquela informação com fervor e então algo se encaixou, mesmo que à força, até fazer sentido. Ao fugirem, encontrara em sua mochila um mapa velho que tinha um traço que ligava Hend — mais especificamente a parte da floresta, onde morava — até Donvi. Não houvera explicação para aquilo. Até agora.

— Eu era uma criança de Donvi? — Questionara, ainda com o fio de voz que lhe sobrara depois do choque.

Ryda assentiu, o rosto sério e dourado.

— Seu pai o levou daqui.

— Ele me tirou da minha família? — Explodiu Joaquim. Seus dedos estavam ficando doloridos, apertados nos punhos.

— Ele precisou. Sua família estava prestes a morrer. Todos eles. Clemente precisou fazer isso.

— O que eles fizeram? O que poderiam ter feito?

— Eles faziam parte do grupo que o antigo rei escolheu para assassinar. Porque podia. Você foi o único daquele grupo que sobreviveu. Clemente, antes de fugir, veio até mim e pediu que eu o protegesse. E eu o fiz. É por isso que você não pode ser machucado. Mais precisamente, não pode ser machucado ao ponto de sua vida estar em risco. As pessoas que tentarem serão punidas.

— Já soubemos disto — Érico murmurara.

— Mas, minha magia tem limites, como qualquer outra coisa. Ela não impede que você se auto machuque. Por isso essa rachadura em seu peito. Você mesmo a fez.

— E por que não morri imediatamente? — Distraidamente, Joaquim passou a mão no peito, onde sentia as bordas do machucado e o calor que aquela luz dourada trazia. Não reconfortante, aquele calor, pois vinha de dentro dele. E isso não era normal.

— Porque você foi impelido por outra pessoa. É o mesmo que ser forçado. Não estava em seu juízo perfeito, caso o contrário, nem estaria aqui. Compreende, criança?

— Não me chame assim.

— Ora! Eu tenho quase duzentos anos! Poderia chamar uma tartaruga de criança se quisesse! — As frases animadas de Ryda eram animadas demais. Estavam deixando Joaquim com dor de cabeça. Isso também se dava a excesso de informações que recebeu nos últimos vinte minutos.

— Quando fugiram continuei escondido. Até o reino de Donvi selar seus portões. O rei...

— O rei atacou meu reino — A voz de Érico se elevara a uma oitava, o ódio transbordava de seus lábios quase como sangue. O olhar dele era, com certeza, assassino. — e não vou perdoá-lo por tal coisa. Se ele estiver aqui, quero vê-lo. quero saber por que fez o que fez e como pode deixar que tudo isso acontecesse quando a Paz Fria...

— O rei de Donvi — Ryda o interrompeu, com a voz sombria e mais ameaçadora que a do príncipe — era um bom homem. Ele não teve nada a ver com o início dessa guerra, então peço que modere suas palavras. Ele foi uma vítima tanto quanto nós.

— O que quer dizer? — Nas entrelinhas, Érico dizia: Não acredito em você.

— Se acha que Hend foi o primeiro a ser atacado, está muito enganado, Vossa Alteza. Por que acha que os suprimentos pararam de ser enviados? Donvi foi o primeiro reino a ser invadido pelos rebeldes. Não o último.

— O último? — Lipe guinchou, assustado.

— O primeiro? — Joaquim dissera.

Érico se manteve calado, pensando.

Por fim, disse, e a voz estava mais rouca que o normal:

— Eles estavam com o brasão da árvore em chamas. Como explica isto? — Ele estava se agarrando a o último fio de esperança que conseguiu pensar e isso deixou Joaquim constrangido. Quase com pena.

— Eles roubaram — Ryda deu de ombros e sua boca formou uma linha fina de desgosto. — Usaram como se fossem daqui.

— E de onde são?

— Não sei. Mas suspeito que sejam de Sinos.

— Essa história está ficando cada vez pior — murmurou Joaquim para ninguém. Estava olhando para a porta, na verdade.

Pelo canto de olho, viu quando Ryda assentiu.

— Por isso precisamos que vocês entendam tudo logo.

— Precisam? Quem?

Joaquim pegara de novo em sua mão e pediu que ele não se assustasse.

— Pare de me dizer isso — fora a resposta de Érico.

A porta abrira de novo e as princesas entraram. Junto com Cíntia, Messina, Koper, Agário, Tayson e Aloísio. E mais pessoas que Joaquim não fora apresentado. Érico se jogou contra os travesseiros às suas costas e todos ouviram quando ele murmurou para o teto:

— Estamos todos loucos. 

Coroa, Flechas e Correntes (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora